sexta-feira, 29 de junho de 2012

O último dia




Por: José Ricardo

Talvez o Soldado Barros não fosse mais trabalhar fardado por um longo tempo. Com muita dificuldade e depois de muitos contatos telefônicos e pessoais, conseguira persuadir o chefe da S2 a lhe transferir para aquela seção. Barros era um soldado recém-formado, daqueles que ainda estava se adaptando à vida castrense. Não gostava de usar cobertura, pois estragava seu cabelo arrepiado à base de gel.



Quase sempre, chegava ao batalhão com o som do carro em alto volume, tocando funk, de preferência aqueles que enalteciam a atividade policial. Quem o visse pela primeira vez poderia até achar que ele fosse um playboyzinho, o que não era verdade; Barros era uma pessoa bem humilde. Ele ainda tinha aqueles papos das ralações da academia e das novidades com as quais se deparava a cada novo turno de serviço operacional; ainda não havia excluído certas gírias, como véio, mano…

O Sargento Moisés, graduado com quem trabalhava há cerca de um ano, estava lhe ensinando muitas coisas, até porque Barros era bastante curioso. Sempre que tinha alguma dúvida, perguntava para o sargento. Com aquele sotaque meio acariocado, trocando os Ss pelos Xs, não deixava passar a oportunidade. Sasrgento, em quanto tempo prescreve a transgressão disciplinar?

Sasrgento, a gente pode atirar nas costas do motoqueiro que fugir da blitz? Sasrgento, qual munição é mais potente? Sasrgento, … E o sasrgento sempre tinha o maior prazer em responder as perguntas cujas respostas sabia. Mas o sargento não sabia de tudo, afinal, ele não era uma enciclopédia policial-militar ambulante.

O Sargento Moisés sempre fora um militar de iniciativa. Todavia, nos últimos meses, andava desiludido com a corporação. Sua produtividade, ou seja, o número de prisões e apreensões, havia caído bastante. Ele até que estava tentando recuperar a antiga motivação, mas certos pensamentos não lhe saíam da cabeça. Sentia-se traído. O sargento também estava cansado; eram tantos encargos extra-horário de serviço. Procedimentos administrativos, Conselho de Ética, monitorias… Com toda essa sobrecarga de trabalho, talvez ele acabasse ficando doido de verdade.

Apesar de terem perfis de personalidade bem diferentes, o sargento gostava de trabalhar com o Soldado Barros. Este tinha uma qualidade que o sargento achava indispensável: DISPOSIÇÃO. O sargento sabia que Barros não hesitaria um segundo em cuspir fogo pra cima de quem representasse risco à vida deles. Disposição era algo que não lhe faltava. O que lhe faltava era um pouquinho de maturidade profissional, mas isso só se adquire com o tempo, com a experiência.

E, naquele que seria o último dia em que trabalhariam juntos, lá estavam o sargento e o soldado no quartel se equipando para mais um turno de serviço. Quando embarcaram na viatura, o soldado disse:

- Sasrgento, eu to indo pra S2. Hoje a gente tem que vibrar.

Vibrar era algo que o sargento não estava com a mínima vontade de fazer. Todavia, para que o Soldado Barros levasse boas recordações do tempo em que trabalharam juntos, decidiu que naquele último dia iriam trabalhar como nos primeiros dias da parceria: vibrando mais do que toyota velha.

Mal saíram do quartel e a central de operações já os empenhou numa ocorrência de vias de fato. Segundo telefonema recebido pela central, um rapaz estaria agredindo a esposa dentro de casa. Para os militares, esse empenho frustrou os planos de combaterem a criminalidade violenta. Seria mais uma briga de casal a se somar às centenas de outras que já haviam atendido. Mas não sabiam eles o que estava para acontecer. Na atividade policial, em um minuto, tudo pode mudar.

- Sasrgento, esses seus primos não deixam a gente trabalhar - Barros havia apelidado todos os ébrios de “primos do sargento”. Em certa ocasião, um bêbado daqueles bem antipáticos ficou a todo o momento chamando o sargento de “primo”. Pô, primo, eu tô de boa. Primo, eu sou trabalhador. Primo, …

Descontentes, achando que fosse apenas mais um bebum que havia agredido a esposa, os militares deslocaram para o local da solicitação. Localizaram a casa em que estaria ocorrendo a contenda. Era um barraco sem acabamento de dois andares. No entanto, não perceberam nenhum fato anormal. Já pensando que fosse um trote, o sargento desembarcou da viatura e se aproximou da casa. De súbito, saiu do interior do barraco um rapaz enfurecido, completamente transtornado e esbravejando:

- Me prende! Me prende! Eu já morri em Portugal.

Os militares não entenderem nada. Como o rapaz poderia ter morrido se estava bem ali na frente deles.

O rapaz entrou de novo na casa. Ficou alguns segundos lá dentro e saiu segurando um pedaço de mourão de cerca de dois metros de comprimento. Os militares tentaram a todo custo convencê-lo a largar o pedaço de madeira, porém o rapaz nem prestava atenção em que os militares diziam; gritava incessantemente palavras de baixo calão e esbravejava coisas sem sentido. Depois de cerca de um minuto gritando sem parar, o rapaz entrou de novo na casa e ali se trancou. Os militares começaram a ficar preocupados, em razão de a solicitação dar conta de que o rapaz estaria agredindo a esposa. Ela poderia estar dentro da casa.

- Sasrgento, o rapaz pôs fogo na casa. Olha a fumaça saindo lá da janela.

Além da fumaça, também era bem visível as chamas. O rapaz colocou fogo em roupas e em colchões. A ocorrência que seria corriqueira repentinamente se transformou numa de complexidade bem maior. Os militares precisavam entrar na casa para averiguar se havia mais alguém além do rapaz. Mas como fazer isso? Dando um tiro nele? Entrando na casa no peito e na raça? E se o rapaz colocasse fogo em algum botijão de gás? Iria tudo pelos ares, inclusive os militares. O sargento até se lembrou do filme Tropa de Elite. Você vai se explodir, você vai me explodir…

Só Deus sabe como o sargento desejou ter um kit de munição química naquele momento. Algumas bombas de gás iriam facilitar bem as coisas. Era somente saturar o interior do imóvel com gás químico inquietante / incapacitante que o rapaz iria sair. Se não saísse, iria ao menos desmaiar. Depois, seria somente prender um pouco a respiração, entrar na casa enfumaçada e averiguar se havia mais alguém ali. O sargento retirou da cintura o rádio comunicador móvel e pediu reforço.

- Atenção, rede. Prioridade! Prioridade! O rapaz aqui pôs fogo na casa. Existe a suspeita de que tenha mais alguém lá dentro.

- Ô viatura que pediu apoio, o DM7888888888 está deslocando a mil praí.

Munição química era realmente necessária. O sargento possuía um tubo de spray de gás pimenta, comprado com dinheiro do próprio bolso; diziam que a venda e o uso desse produto era proibida, mas o sargento não dava a mínima pra isso. O que importava mesmo era sua segurança. E, numa situação como aquela, era imperioso o uso do spray de gás pimenta. Poderia representar a vida ou a morte de uma pessoa que possivelmente estava no interior da casa. Era imprescindível que os militares pensassem e agissem rápido. Não dava para analisar questões legais.

O sargento se aproximou da porta do barraco, chutou-a, tentou entrar, mas o rapaz começou a desferir golpes com o pedaço de madeira, momento em que o graduado não hesitou em aspergir o restante do gás pimenta que possuía em direção do rapaz. Lá vão embora meus B$ 90,00. E para salvar a vida de terceiros, pensou. Só que, por infelicidade, o tubo já estava quase vazio. Não produziu o efeito inquietante / incapacitante desejado. O rapaz subiu em disparada para o pavimento de cima.

Nesse momento, uma viatura de área da mesma companhia, com a sirene ligada e em alta velocidade, chegou em apoio. Assim que desembarcou, o Soldado Amâncio disse:

- Sargento, nós já acionamos o corpo de bombeiros.

Os militares dessa viatura ouviram as informações passadas pelo sargento na rede de rádio e vieram logo em apoio, passando primeiro no pelotão do corpo de bombeiros para pedir que um caminhão pipa fosse ao local para apagar o incêndio.

O Soldado Amâncio já chegou querendo por um fim naquela situação. Vendo que o rapaz havia descido novamente, Amâncio aproximou-se da porta, a qual estava entreaberta, pegou seu tubo de gás pimenta, também comprado com dinheiro do próprio bolso, e aspergiu-o quase todo em direção do interior do imóvel. Entretanto, o rapaz estava tão alterado que continuou gritando e até jogou para fora da casa um maço de roupas em chamas. O sargento pediu de novo apoio.

- Eu preciso de um DM aqui equipado com munição química. Pra tirar o rapaz de lá, só com bomba.

Em ocasiões como aquela, cada minuto parece durar mais de uma hora. A luta é contra o tempo. O DM estava vindo a mil, mas cada minuto que se passava parecia uma eternidade.

O Soldado Barros ouviu o Sargento pedindo bomba. Barros tinha em sua pasta bombinhas daquelas do tipo “cabeça de nego”. E, já que o sasrgento queria bomba, por que não usar de meios fortuitos? Correu até a viatura, pegou três bombinhas, foi até o maço de roupas e, quando iria acendê-las, viu que muitos curiosos estavam próximos.

- Afasta! Afasta! - determinou o soldado.

Percebendo que os circunstantes se afastaram, acendeu uma bombinha no maço de roupas em chamas e arremessou-a para dentro da casa. Depois de exatos quatro segundos, ouve-se uma explosão. O rapaz, achando que fosse um tiro, deitou-se no chão. Os militares perceberam a falta de movimento no interior do barraco. O Sargento aproximou-se da casa e desferiu um forte chute na porta, abrindo-a. Quando a porta abriu, os militares se depararam com o rapaz deitado no chão. Ele deve ter desmaiado por intoxicação, pensou o sargento.

- Vamos entrar e algemá-lo - determinou.

Os militares entraram na casa dispostos a tirar o rapaz de lá a qualquer custo. Quando o sargento colocou o primeiro lado da algema no braço do rapaz, este recuperou o ímpeto agressivo e começou a se debater, a dar chutes e murros a esmo e tentou se desvencilhar. O Sargento logo tratou de aplicar um golpe de enforcamento no pescoço do rapaz. Lógico que não tinha o objetivo de matá-lo. A conjuntura adversa exigia soluções enérgicas. Em certa ocasião, o Cabo Guilherme Santiago, expert em artes marciais, havia orientado o sargento aplicar golpes de enforcamento do tipo “mata leão” ao primeiro sinal de reação violenta por parte do abordado ou do preso. O cabo afirmava que esses golpes de pegar no dedo ou não mão e torcer não funcionavam em pessoas agressivas. Infelizmente, entrar em luta corporal com pessoas a serem presas era rotina para o sargento. E, para dominar os recalcitrantes, o jeito era mesmo aplicar golpes de enforcamento. Primeiro a vida do militar, depois a do detido.Melhor enfrentar o homem da capa preta do que ir para debaixo da terra, era o que o sargento pensava.

Mesmo com o golpe bem encaixado, o rapaz ainda se debatia.

- Algema ele! Algema ele! - gritava o sargento.

Apesar de os militares estarem com supremacia de força, estava difícil para algemar o rapaz; ele não parava de se debater. O Soldado Amâncio pegou novamente seu spray de gás pimenta e o aspergiu na direção do rosto do rapaz. Só que o gás pimenta, por ser uma substância gasosa e, conseqüentemente, muito volátil, saturou todo o ambiente. Quem mais sofreram os efeitos do gás foram o sargento e o Soldado Barros, que estavam tentando dominar o rapaz.

- Pára! Pára! Pára! - gritou o sargento para Amâncio.

Os olhos dos militares lacrimejavam, a pele queimava, o pulmão ficou irritado.

- Algema ele! Algema ele! - voltou a gritar o sargento.

Nesse momento, chegou ao local uma guarnição do corpo de bombeiro. Vendo a dificuldade dos militares, um bombeiro perguntou:

- Precisa de ajuda aí? - A união sempre fora algo presente e admirável entre os policiais e os militares.

- Vem cá! Ajuda a gente aqui! - respondeu o sargento, ofegante.

O bombeiro se juntou aos militares. A fumaça, o calor, o ambiente saturado pelo gás, tudo isso atrapalhava dominar o rapaz, que não cansava de se debater. Como estava difícil de algemá-lo dentro do barraco, o jeito foi retirá-lo dali. Os destemidos milicianos seguraram as pernas e os braços do rapaz, levantaram-no e, em meio a chutes e murros a esmo, levaram-no para fora do barraco. Logo depois disso, os heróis bombeiros começaram a apagar o incêndio com o caminhão pipa. Mas não dava ainda para entrar na casa, principalmente no andar superior, que estava tomado pelas chamas e pela espessa fumaça.

Já na rua, o rapaz foi algemado e amarrado. Isso mesmo, amarrado! Foi o único modo de controlá-lo. Procedimento que foi adotado até para evitar que ele mesmo pudesse se lesionar. Como se diz no jargão militar, “a onça já estava morta”. Agora era só faltava tirar a foto.

Os bombeiros conseguiram debelar o incêndio e, junto com os policias, averiguaram o barraco para ver se havia mais alguém ali. Ninguém foi encontrado. Graças a Deus, pensou o sargento.

Agora era levar o rapaz para a delegacia. Entretanto, não dava para conduzi-lo na viatura de área, visto que ela não tinha compartimento de transporte de preso. O Sargento novamente pediu apoio.

- Atenção, rede, eu preciso de um DM aqui para conduzir o rapaz - Na unidade em que o sargento servia, praticamente só as viaturas DM tinham compartimento para transporte de presos.

Alguns parentes do rapaz chegaram exaltados ao local.

- Cadê o Marconi? Cadê o Marconi?

- Tá preso! - respondiam os militares.

- Não prende ele, não! Prende ele não! Ele é doente! Ele tem problema de cabeça! Ele já ficou internado por ser dependente de drogas.

O sargento não iria liberá-lo nem por ordem do Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Ordem ilegal não se cumpre.

Quando a guarnição DM chegou, os militares colocaram o rapaz no compartimento de presos e seguiram direto para delegacia, onde encerraram a ocorrência.

Depois disso, o sargento e o soldado trabalharam como nos velhos tempos. Fizeram uma incursão na favela, abordaram veículos e pessoas suspeitas… Resumindo, vibraram mais do que toyota velha.

- Sargento, hoje o turno foi legal! - disse Barros para o sargento quando eles estavam desarmando. - Hoje foi legal!

Fim - Mensagem:

“Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas não vai só, nem nos deixa sós; Deixa um pouco de si, e leva um pouco de nós.” - Antoine de Saint-Exupéry.

Nota: Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.

“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independetemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituiçaõ Federal.



Diário de PM/BM

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