São Paulo - Da sacada de seu apartamento, no Jardim da Luz, o aposentado Miguel Ângelo Biondi, paulistano do Bexiga, de 71 anos, aponta o perfil do Edifício Andraus, perdido no horizonte do emaranhado de construções do centro da cidade.
Mal se vê o prédio, mas ele o reconhece pelo desenho inconfundível do terraço, um heliporto desativado, que na noite de 24 de fevereiro de 1972 serviu de base para os helicópteros resgatarem centenas de vítimas do mais impressionante dos grandes incêndios ocorridos em São Paulo. Foi uma tragédia de 7 horas e 35 minutos, que deixou 16 mortos e 345 feridos.
Mal se vê o prédio, mas ele o reconhece pelo desenho inconfundível do terraço, um heliporto desativado, que na noite de 24 de fevereiro de 1972 serviu de base para os helicópteros resgatarem centenas de vítimas do mais impressionante dos grandes incêndios ocorridos em São Paulo. Foi uma tragédia de 7 horas e 35 minutos, que deixou 16 mortos e 345 feridos.
As labaredas começaram por volta das 16h15 na sobreloja das Casas Pirani, invadiram em poucos minutos todos os 28 andares e atingiram cinco prédios vizinhos - três no outro lado da Avenida São João e dois na esquina da Rua Aurora. Traumatizada, a cidade parou.
"Entrei meia hora antes na seguradora em que trabalhava para adiantar umas notas promissórias e quase não saí mais", recordou Biondi na tarde de quarta-feira, depois de abraçar em silêncio, olhos marejados, o coronel Roberto Lemes da Silva, o então tenente-bombeiro que o salvou 32 anos atrás. Com a ajuda de três sargentos e um cabo, o oficial arrastou pelo menos 40 pessoas ao longo de 7 metros de uma escada, improvisada em ponte, entre o teto do Edifício Palladium e o 12.º andar do Andraus. "Como é que vocês tiveram aquela idéia?", perguntou Biondi, ainda admirado com a criatividade da equipe da 4.ª Companhia de Busca e Salvamento que o livrou do edifício em chamas.
Lemes, um especialista em segurança e em combate ao fogo que agora dá aulas, aos 57 anos, num curso de pós-graduação para gerentes de cidades na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), não tem resposta para a curiosidade de Biondi. "Sei lá, numa hora dessas a gente faz o melhor que vem à cabeça", desconversou, emocionado, feliz com o sorriso agradecido do corretor aposentado. "Obrigado pelo que fez pela gente", repetia sem parar aquele homem que ele acabara de conhecer.
Biondi não se lembrava das feições do bombeiro, mas guardou viva na memória a imagem de um vulto escuro que brilhava a seu lado, iluminado pelas luzes piscando na rua, 50 metros abaixo. "Só recordo que era um bombeiro que sabia conversar, falava alto e animava a gente", disse Biondi. "Era eu", revelou Lemes - lembrando do recurso que ele e seus homens costumavam usar para encorajar vítimas.
Gratidão
Biondi e sua mulher, Dalva, olharam o coronel com extrema gratidão. "O senhor foi um anjo sem asas", agradeceu o aposentado, conferindo com o homem que salvou sua vida detalhes de uma tragédia que, três décadas depois, ainda não saiu de sua cabeça. "Em nenhum momento pensei que fosse morrer, mas não sabia como ia sair daquele inferno", revelou, sempre sorrindo, orgulhoso da própria sorte. Biondi tentou escapar pelo terraço, de onde decolavam 12 helicópteros, mas o alçapão de acesso havia sido trancado.
Restavam as escadas, prédio abaixo, sob o calor de uma temperatura que, no foco das chamas, atingia 700 graus. "As paredes pareciam uma frigideira, de tão quentes que estavam", lembra-se o corretor.
A maioria dos sobreviventes, entre os quais Paschoal Giuliano, presidente do Palmeiras, saiu por esse caminho. O coronel Lemes calcula que mais de 2 mil pessoas estavam no Andraus quando o fogo começou, entre a primeira e a segunda sobreloja das Casas Pirani, que tinham suas vitrines no térreo. Do heliporto foram tiradas mais de 300 pessoas. Aglomeradas no terraço, enquanto uma multidão gritava da rua pedindo calma, elas impediam a descida dos helicópteros. Até que o capitão Hélio Caldas, comandante do tenente Lemes, saltou de um dos aparelhos e abriu uma clareira para iniciar o resgate.
"Me deitaram no chão de um desses helicópteros e me levaram para a Praça Princesa Isabel e dali para o hospital", recorda o publicitário Levy dos Santos, funcionário da Siemens, uma das empresas do condomínio. As outras inquilinas eram Petrobras, Shell e várias corretoras de seguros, além da Pirani.
Centenas de vítimas espremiam-se pelas escadas, enquanto o socorro não chegava. "Eu não tinha mais esperança de viver e, por isso, recoloquei no dedo uma aliança com o nome de minha mulher, Lethes, para que pudessem identificar meu corpo", conta Levy, de 75 anos, reconstituindo lembranças do "tempo interminável" que passou no 21.º andar.
Desespero
Nem todos tiveram a esperança de Biondi e a calma de Levy. Algumas pessoas lançaram-se do terraço ou das janelas, no desespero de escapar da morte. O vento empurrava as chamas para o lado da Avenida São João, onde o volume de fogo transformou a tragédia do Andraus num dos incêndios visualmente mais espetaculares da história. "Desse ponto de vista, o Andraus foi mais pavoroso que o Joelma, em que morreram 187 pessoas", afirma o coronel Lemes. Os números de vítimas são contraditórios, porque os registros somam aos mortos retirados dos prédios a alguns que morreram depois.
"Não morri no Andraus porque pedi demissão na Siemens um dia antes", afirma a baiana Judith Santos Tolentino, 47 anos ascensorista do Edifício Palladium. Ela era copeira da multinacional alemã e havia passado naquela tarde de quinta-feira para acertar as contas, quase na hora do incêndio. "Recebi o dinheiro e, como não haviam dado baixa na carteira, resolvi ir comprar uma passagem na antiga rodoviária para meu irmão, que ia para Ilhéus. Quanto voltei, o prédio estava pegando fogo". Judith guarda fotos de funcionários da Siemens, entre eles Levy dos Santos, seu padrinho de casamento.
Salomão Ferreira Chaves, o zelador do Palladium que na terça-feira levou o coronel Lemes ao terraço do prédio para mostrar onde os bombeiros improvisaram uma ponte para o Andraus, ouve essas histórias com um nó na garganta. Ele tinha 18 anos de idade e acompanhou o incêndio perdido no meio da multidão que se juntou na Praça da República.
"Meu sofrimento era ver que não podia fazer nada para socorrer as vítimas", disse o zelador. Trinta anos depois da catástrofe, os vizinhos e testemunhas da tragédia falam dela com detalhes, descrevendo cenas e repetindo diálogos como se tivessem ocorrido alguns dias atrás. O coronel Lemes também. Ele ainda ouve ressoar a voz de uma moça que, olhando-o nos olhos, repetia sem parar: "Bombeiro, eu quero viver!"
Diário de PM/BM
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