quinta-feira, 7 de junho de 2012

Histórico de BO




Por: José Ricardo

Mais de três horas de rastreamento. Subimos e descemos becos de favela, perseguimos motocicleta, muitas abordagens. O turno foi agitado, pois um dos líderes da quadrilha que dominava o tráfico de drogas no Morro do Kid fora morto. O restante da quadrilha jurava vingança, o que significava muito trabalho para a equipe do turno seguinte.



Com as fardas molhadas de suor, eu e o Soldado Brucis estávamos sentados na frente do computador.

- Sargento, este histórico de ocorrência eu quero ver o senhor fazer – Brucis me falou, animado.

- Beleza. Vai demorar um pouco, em razão dos muitos dados que não podemos deixar de constar. Mas esta ocorrência não é muito diferente das demais. Em todo boletim de ocorrência, é necessário responder a algumas perguntas: Onde? Quando? Quem? Como? Por quê? Resultado? Ah, também é importante justificar e fundamentar nossas ações, como no caso de apreensão de objetos.

- Como começar o histórico, sargento?

- Vamos aprender fazendo – Abri a página de histórico e comecei a digitar – Você pode narrar os fatos na sequência em que se sucederam ou a partir do momento em que você tomou conhecimento. Normalmente, eu opto pela segunda opção. Nesta ocorrência, eu vou começar assim. “Por volta das 03h30min, a Central de Comunicações nos transmitiu que”.

Brucis me interrompeu.

- Sargento, mas esta informação, de como fomos acionados, já consta na primeira parte da ocorrência...?

- Sim. Verdade. Porém, pensa só. Imagine um julgamento de homicídio. Qual parte da ocorrência você acha que o promotor ou o advogado vão ler para o júri? Você tá pensando que eles ficam lendo nome dos pais dos envolvidos, identidade, endereço, chassi de veículo... Em todos os julgamentos que assisti, eles só leram o histórico da ocorrência. Por isso, todas as informações que eu julgo importantes eu consto também no histórico, mesmo que já estejam em outro campo.

- Entendi, sargento.

- Beleza. Continuando. “... a central de comunicações nos transmitiu que, segundo diversas solicitações, um indivíduo estaria caído na Rua Woofer, 66, Morro do Kid, perdendo muito sangue, pois fora esfaqueado durante uma luta corporal com um outro indivíduo.” Constei essas informações para quem ler ter a mesma noção do que sabíamos antes de chegar ao local. Agora, vou colocar a situação com a qual deparamos. “Comparecemos ao local, contudo a vítima não se encontrava mais ali, visto que fora socorrida por populares até o Pronto Socorro Central. Os circunstantes apenas nos relataram que o autor seria um cidadão conhecido pela alcunha de Zé Mix. Enquanto outras guarnições procuravam o autor, comparecemos ao Pronto Socorro, onde o médico de plantão nos relatou que a vítima já deu entrada naquele hospital sem sinais vitais, apresentando cerca de sete perfurações no abdome e nas costas, estando as vísceras expostas.”

- Sargento, e sobre o autor?

- Vamos falar sobre ele agora. “Segundo as testemunhas, as quais socorreram a vítima e presenciaram o fato criminoso, um indivíduo conhecido por Zé Mix, de cor clara, cabelos lisos, altura mediana, residente na Rua Z, 94, Morro do Kid, moto taxista, teria se desentendido com a vítima porque esta teria agredido um menino há alguns dias; que, após uma inflamada discussão, autor e vítima entraram em luta corporal, tendo o autor sacado uma faca da cintura e desferido diversos golpes contra a vítima, a qual perdeu os sentidos e ficou caída na Rua Woofer, momento em que o autor aproveitou para evadir de posse do instrumento utilizado no crime.”

- Duas dúvidas, sargento. Uma, é sobre esses dois pontos e que (; que...). A outra, é sobre a motivação do crime. As testemunhas foram muito vagas neste ponto, e, pelo que conhecemos do local e da própria vítima, o crime pode ter relação com o tráfico de drogas.

- Sobre os dois pontos e que (; que...), é muito usado em termos de depoimento, tanto em processos administrativos quanto em processos judiciais. Serve para indicar que o relato das pessoas ouvidas ainda não terminou. Em vez de escrever “A testemunha disse ainda que...”, ou “ A testemunha disse também que...”, escreve-se somente “; que...; que...; que...; que...”. Quanto ao crime ter relação com o tráfico de drogas, nós não podemos afirmar, mas também não podemos omitir essa possibilidade. Então, eu vou constar o que sabemos. “Ainda, de acordo com as testemunhas, o autor, no momento do crime, estava de posse de dois papelotes de crack. As testemunhas não souberam dizer se era para consumo próprio ou para a venda. O local onde ocorreu o crime é conhecido como ponto de comércio de entorpecentes, e a vítima é suspeita de pertencer a quadrilha que domina o tráfico de drogas no Morro do Kid, inclusive, segundo sistema de prontuários criminais, já foi condenada judicialmente pelos crimes de tráfico de drogas, roubo e tentativa de homicídio.” Pronto, não falamos que o crime tem relação com o tráfico de drogas; deixamos para a consciência de cada um.

- E sobre o a rastreamento, a motocicleta...?

- Vamos devagar com o andor que o santo é de barro. “Durante rastreamento, dois indivíduos que estavam na motocicleta apreendida (CG TITAN de cor vermelha, placa HHH-9999), evadiram em alta velocidade, desrespeitando as sinalizações de trânsito e as regras de circulação, assim como colocando a vida dos transeuntes em perigo. Efetuamos o acompanhamento da motocicleta, tendo os ocupantes desembarcado na Rua Z e, em seguida, evadido a pé, momento em que também desembarcamos da viatura e fomos no encalço dos indivíduos. Estes adentraram na casa de número 94 da mesma rua, imóvel que, segundo as testemunhas, pertence ao autor do crime. Ante o estado de flagrante delito, adentramos no imóvel, contudo não conseguimos localizar os indivíduos, pois estes pularam o muro dos fundos da residência e fugiram para o interior do aglomerado, local com grande concentração de becos e vielas. A casa do autor encontrava-se toda revirada, com praticamente todos os móveis quebrados. Nas proximidades da residência, abordamos alguns menores, os quais nos relataram que havia rumores de que a quadrilha que domina o tráfico de drogas no aglomerado iria vingar a morte da vítima. Os menores nada disseram sobre os danos na casa do autor. Depreende-se, contudo, que já seja um ato de vingança pela morte da vítima.”

- Sargento, quando nosso comandante ler essa última parte que o senhor digitou ele já vai saber que vai ter problema nas próximas horas, talvez até durante alguns dias. Os vagabundos com certeza vão querer vingança.

- É bom já deixar avisado. Quando o capitão chegar, ele vai ler a ocorrência e já vai ficar sabendo que vai ter problemas durante o dia. Vamos continuar. Como eu te falei, é importante fundamentar nossos atos. O Código de Processo Penal diz que os objetos que tiverem relação com o crime devem se apreendidos, correto? Então... “Pelas circunstâncias narradas, a motocicleta tem relação com o crime e, considerando ainda o crime de direção perigosa praticado pelo condutor, ela foi apreendida, removida pelo Socorro Multicar e encaminhada ao Pátio Supermotors, sendo lavrado o auto de infração de número 0001.”

- Sargento, falta colocar que o autor não foi localizado.

- “Apesar do intenso rastreamento realizado pela nossa viatura e pelas viaturas do setor, o autor não foi localizado; os dados dele foram obtidos com seu irmão, o envolvido 06, sendo este orientado a tentar entrar em contato com o autor para que ele se entregue.”

- Sargento, falta alguma coisa?

- Falta apenas dizer que continuamos no rastreamento, ou melhor, no encalço do autor para, caso ele seja encontrado, ainda persista o flagrante delito, artigo 301 do CPP. “Não obstante, as viaturas do turno já estão informadas sobre o crime e continuam no rastreamento e no encalço do autor.” Então, ficou assim o histórico da ocorrência:

“Por volta das 03h30min, a Central de Comunicações nos transmitiu que, segundo diversas solicitações, um indivíduo estaria caído na Rua Woofer, 66, Morro do Kid, perdendo muito sangue, pois fora esfaqueado durante uma luta corporal com outro indivíduo. Comparecemos ao local, contudo a vítima não se encontrava mais ali, visto que fora socorrida por populares até o Pronto Socorro Central. Os circunstantes apenas nos relataram que o autor seria um cidadão conhecido pela alcunha de Zé Mix. Enquanto outras guarnições procuravam o autor, comparecemos ao Pronto Socorro, onde o médico de plantão nos relatou que a vítima deu entrada naquele hospital sem sinais vitais, apresentando cerca de sete perfurações no abdome e nas costas, estando as vísceras expostas. Segundo as testemunhas, as quais socorreram a vítima e presenciaram o fato criminoso, um indivíduo conhecido por Zé Mix, de cor clara, cabelos lisos, altura mediana, residente na Rua Z, 94, Morro do Kid, mototaxista, teria se desentendido com a vítima porque esta teria agredido um menino há alguns dias; que, após uma inflamada discussão, autor e vítima entraram em luta corporal, tendo o autor sacado uma faca da cintura e desferido diversos golpes contra a vítima, a qual perdeu os sentidos e ficou caída na Rua Woofer, momento em que o autor aproveitou para evadir de posse do instrumento utilizado no crime. Ainda, de acordo com as testemunhas, o autor, no momento do crime, estava de posse de dois papelotes de crack. As testemunhas não souberam dizer se era para consumo próprio ou para a venda. O local onde ocorreu o crime é conhecido como ponto de comércio de entorpecentes, e a vítima é suspeita de pertencer a quadrilha que domina o tráfico de drogas no Morro do Kid, inclusive, segundo sistema de prontuários criminais, já foi condenada judicialmente pelos crimes de tráfico de drogas, roubo e tentativa de homicídio. Durante rastreamento, dois indivíduos que estavam na motocicleta apreendida (CG TITAN de cor vermelha, placa HHH-9999), evadiram em alta velocidade, desrespeitando as sinalizações de trânsito e as regras de circulação, assim como colocando a vida dos transeuntes em perigo. Efetuamos o acompanhamento da motocicleta, tendo os ocupantes desembarcado na Rua Z e, em seguida, evadido a pé, momento em que também desembarcamos da viatura e fomos ao encalço dos indivíduos. Estes adentraram na casa de número 94 da mesma rua, imóvel que, segundo as testemunhas, pertence ao autor do crime. Ante o estado de flagrante delito, adentramos no imóvel, contudo não conseguimos localizar os indivíduos, pois estes pularam o muro dos fundos da residência e fugiram para o interior do aglomerado, local com grande concentração de becos e vielas. A casa do autor encontrava-se toda revirada, com praticamente todos os móveis quebrados. Nas proximidades da residência, abordamos alguns menores, os quais nos relataram que havia rumores de que a quadrilha que domina o tráfico de drogas no aglomerado iria vingar a morte da vítima. Os menores nada disseram sobre os danos na casa do autor. Depreende-se, contudo, que já seja um ato de vingança pela morte da vítima. Pelas circunstâncias narradas, a motocicleta tem relação com o crime e, considerando ainda o crime de direção perigosa praticado pelo condutor, ela foi apreendida, removida pelo Socorro Multicar e encaminhada ao Pátio Supermotors, sendo lavrado o auto de infração de número 0001. Apesar do intenso rastreamento realizado pela nossa viatura e pelas viaturas do setor, o autor não foi localizado; os dados dele foram obtidos com seu irmão, o envolvido 06, sendo este orientado a tentar entrar em contato com o autor para que ele se entregue. Não obstante, as viaturas do turno já estão informadas sobre o crime e continuam no rastreamento e no encalço do autor.”

- Ficou bom, sargento.

- Espero que sim. Poderia ficar menor. Por exemplo, se narrarmos na sequência em que os fatos se sucederam e omitirmos os dados que já constam em outros campos da ocorrência, poderia ficar assim:

“Segundo as testemunhas, autor e vítima se desentenderam por motivos banais e, após uma inflamada discussão, o autor sacou uma faca e desferiu diversos golpes contra a vítima; em seguida, evadiu de posse do instrumento do crime. A vítima foi socorrida pelas testemunhas até o Pronto Socorro Central, contudo, segundo o médico de plantão, já deu entrada naquele hospital sem vida, apresentado cerca de sete perfurações no abdome e nas costas. Durante rastreamento, dois indivíduos que ocupavam a motocicleta apreendida evadiram em alta velocidade da nossa guarnição, sendo prontamente perseguidos. Os indivíduos abandonaram a motocicleta na Rua Z e adentraram na casa de número 94 da mesma rua, imóvel que pertence ao autor. Os indivíduos fugiram pelos fundos da residência, não sendo mais vistos. A casa encontrava-se toda revirada e com os móveis quebrados, provavelmente por um ato de vingança pela morte da vítima. A motocicleta foi apreendida por ter relação com o crime e pela prática de direção perigosa, sendo encaminhada ao Pátio Supermotors. Foi lavrado o auto de infração de número 0001. O autor não foi localizado, mas continuamos nos rastreamento e no encalço dele.”

- Dá pra entender também, sargento.

- Verdade. Histórico de ocorrência é assim. Cada um faz de um jeito. Se eu fosse escrever de novo, ficaria diferente. Se outro policial fizesse, ele narraria os fatos de forma diferente. O papo tá bom, mas vamos logo registrar a ocorrência na delegacia que já passou do nosso horário.



Nota: Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou morta, é mera coincidência.



"É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal.



Diario de PM/BM

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