Autor: * Nivaldo de Carvalho Júnior, 3º Sgt PM
“A farda não é uma veste que se despe facilmente, mas sim uma segunda pele que adere à própria alma, irreversivelmente.”
Bastou que eu ouvisse essa frase apenas uma vez para que tais palavras encontrassem lugar cativo em minha memória. A assertiva foi declarada por um major da Polícia Militar de Minas Gerais, durante a cerimônia de encerramento de um curso de ações táticas que tive o privilégio de participar.
Antecederam-se a tal pronunciamento as congratulações para aqueles militares que foram aprovados, seguidas das recomendações sobre a conduta que deveríamos adotar em face da nossa nova missão: atuar em ZQC´s (Zonas Quentes de Criminalidade), com o intuito de combater o crime organizado.
Conforme nos disse o oficial, aquela instigante frase é um dito antigo no meio castrense. Aplicada naquele contexto, constituía um presságio de devoção, posto que, findado o curso, estávamos renovando o compromisso de doar nossas vidas ao ofício de defender a sociedade. Acrescentou que, daquele momento em diante, deveríamos estar prontos para abstermos dos momentos de lazer e convívio familiar em decorrência das nossas incumbências profissionais. Querendo nos incentivar, foi até infeliz ao afirmar que, a partir daquele momento, éramos policiais diferenciados dos demais milicianos. Durante muito tempo, acreditei nos ensinamentos do competente oficial.
Aproximadamente cinco anos após ter concluído o citado curso, fui instado a reinterpretar a frase que inicia este texto. Isso ocorreu graças a um simples e descontraído diálogo com um militar reformado, algo bastante diferente da formalidade que permeou aquela cerimônia presidida pelo major.
Dirigia-me apressado para a Companhia da Polícia Militar da cidade de Pedro Leopoldo, quando fui chamado por um senhor esguio, que apresentava barba volumosa e cabelos encaracolados atingindo a altura dos ombros. Não o reconheci imediatamente, entretanto dispensei a devida atenção porque ele havia declinado o meu “nome de guerra”.
Aos primeiros passos daquele senhor em minha direção, identifiquei o andar inconfundível do Cabo Ari. Os cumprimentos foram intensos e carregados de saudosismo. Ele me parabenizou pela ascensão célere na carreira, demonstrando uma sinceridade pouco comum entre os milicianos. Posteriormente, passou a indagar sobre a vida de vários colegas de caserna que tínhamos em comum.
Em seguida, o Cabo Ari direcionou a conversa para o próprio cotidiano. Disse-me que está contente por ter cumprido seus trinta anos na gloriosa corporação de Tiradentes. Fez questão de mostrar-me o comércio do qual é proprietário, vangloriando-se de não ter se rendido ao ócio que ceifa a vida dos nossos militares reformados. Ele ainda compartilhou comigo o choque psicológico causado pelo afastamento do serviço militar.
O Cabo Ari é figura folclórica do 36º BPM. Dono de um aguçado senso de humor, proporcionou diversas situações que se transformaram em “causos de polícia”. Ele me confidenciou que sonha todas as noites com policiais e bandidos, contou que já abordou suspeitos na rua e só depois se lembrou que não estava mais trabalhando. Finalizou, com lágrimas aportando nos cantos dos olhos, dizendo-me que sentia muita... muita saudade da atuação policial militar.
Despedi-me calorosamente do Cabo Ari e segui pensativo sobre o que me reserva o futuro dentro da corporação. As confidências do graduado pareceram me explicar mais claramente o sentido da metáfora “segunda pele”, comparando-se com a conotação defendida pelo major, tempos atrás.
Posso até concordar que o serviço policial exige dedicação, profissionalismo e sacrifícios. Todavia, a ideia contida na metáfora em comento não quer dizer que temos de negligenciar o convívio com nossas famílias e nossos amigos em razão das competências que assumimos ao ingressar numa organização militar.
O amor à profissão não se mede pelo tempo dispensado ao trabalho, mas sim pelo empenho e compromisso demonstrado durante a execução de uma determinada tarefa. Há policiais que, em apenas doze horas de trabalho, conseguem ser mais eficientes que outros que “comparecem no serviço” durante um mês inteiro.
O douto major presenteou-me com uma frase inesquecível. Mas foi o humilde Cabo Ari quem provou que realmente a farda é uma segunda pele que adere à própria alma, pois ele me mostrou que podemos nos afastar da Polícia Militar, mas esta jamais irá se desvincular de nós. Penso que esse deve ser o real sentido do velho dito castrense.
Diário PM/BM
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