sexta-feira, 27 de julho de 2012

Infância perdida


Eram 23 horas e 15 minutos da noite de sábado, 06 de maio de 2006. Patrulhávamos pelo bairro Nova Pampulha; na época, o mais perigoso da área de atuação do GIEAR (Grupo de Intervenção Estratégica em Área de Risco). Naquele lugar, naquele dia da semana e naquele horário estávamos mentalmente preparados para o pior – troca de tiros, homicídios, traficantes em fuga rumo aos becos estratégicos que ali existem, crianças e adolescentes usando entorpecentes, etc. Entretanto, o que aconteceu foi bem mais simples, mas não menos grave.


Quando descíamos a rua dezoito, local onde é comum o confronto armado entre policiais e criminosos, uma mulher apareceu no meio da via. Os braços estendidos para o alto, sacudindo de um lado para o outro demonstravam desespero. A primeira ideia que nos vem à cabeça não poderia ser outra: mataram alguém. Entramos em estado de alerta. Todos com arma em punho. Os dedos indicadores coçavam o gatilho. Um simples estampido provocaria uma saraivada de tiros na direção do estrondo. Felizmente, nada disso ocorreu.

A aparência da mulher denunciava a vida sofrida que levara. A conversa arrastada e o hálito etílico que nos entorpecia deixava claro o estado de embriaguez. Em prantos, essa senhora nos pediu para buscar sua netinha de quatro anos que estaria sendo espancada pelo próprio pai da criança. Apesar da agressividade com a qual a mulher nos tratava, ficamos sensibilizados com a possibilidade dos fatos serem verdadeiros e decidimos verificar a situação.

Um beco estreito, íngreme, com degraus intermináveis, onde não se enxergava um palmo à sua frente. Este foi o local indicado pela senhora para buscarmos a criança. O Cabo Araújo (policial astuto, do tipo “vibrador”, que muitos colegas chamam de “bitolado”, aquele sujeito que suspeita de tudo e de todos) logo diz : - ô zim, isso é casinha de caboclo!

Para os desavisados “zim” é como chamamos uns aos outros dentro da favela para evitar falar nossos nomes, e “casinha de caboclo” é quando os vagabundos armam uma cilada para os policiais. A suspeita do Cabo Araújo era pertinente, mas o comandante da guarnição, Aspirante Martins, decidiu subir o beco. Eu permaneci na entrada, próximo à viatura policial, para monitorar a entrada no local e chamar reforço, caso fosse necessário. Em poucos instantes, a senhora desceu, já com a criança no colo. A menina era linda: rosto redondo, olhar meigo, cabelos lisos e negros, parecia uma índia. Seu nome era Isabela. Não havia nome mais apropriado, era realmente “bela”. No seu corpo franzino, não havia sinais de agressão. Perguntei-lhe se alguém a havia agredido. Os olhos daquele anjinho se encheram de lágrimas e ela respondeu que sim. Disse que seu próprio pai havia lhe batido, que sua mãe também lhe batia, que sua avó também lhe batia, mas que mesmo assim gostava de todos eles. Perguntei a ela com quem gostaria de ficar. Como uma inocência singular ela respondeu: com mamãe.

Meus colegas retornaram e disseram que o pai de Isabela estava drogado, em companhia de outros dependentes químicos. O barraco onde estavam parecia um chiqueiro. A criança brincava em meio à imundice do local. O pai insistia em ficar com a menina, alegando que sua ex-mulher era uma “puta” e a mãe desta uma “bebum”.

Chegamos à conclusão que não deveríamos deixar a criança nem com o pai (drogado) e tampouco com a avó (bêbada). Saímos, então, à procura da mãe de Isabela, seguindo as dicas da senhora que nos abordou.

- “Olha ela ali”, disse a avó, apontando para um boteco nefasto localizado na Rua Dezenove, ponto de encontro de viciados em drogas, assaltantes, homicidas e demais criminosos que compunham a escória da sociedade local.

Chamamos a mãe da menina. Ela relutou em nos obedecer, até ver que sua mãe e sua filha estavam dentro da viatura. Ao se aproximar aquela jovem, que parecia ainda estar iniciando a sua adolescência, percebi o quanto seria difícil solucionar aquela ocorrência.

A jovem transpirava rebeldia, dizia aos berros: “mãe, o que você está fazendo no carro da polícia com a minha filha”. O nosso comandante tentou explicar a situação, mas de nada adiantou. De tanto gritar, a jovem conseguiu tirar o Aspirante Martins do sério. Em um só gesto, ele puxou a jovem mãe pela gola da camisa e disse que ela devia nos agradecer por termos lhe trazido sua filha. A resposta da jovem não poderia ser mais revoltante: - “E quem disse que eu quero essa porra de menina agora, não vê que eu tô namorando.” Nesse momento, a moça sentiu a gola da camisa apertar seu pescoço. Isso foi a materialização da ira do nosso comandante. Com a voz já distorcida, ela desafiou: “Bate, sô puliça, bate até me matar seu covarde, é só isso que vocês sabem fazer mesmo”.

O comandante determinou: “abra o xadrez, vamos levar esta folgada pra delegacia”. Nesse momento, intervi: “É bobagem, chefe, não compensa. O problema mais grave, que é com quem ficará a menina, não será resolvido". Pensamos em acionar o Conselho Tutelar, mas, devido a experiências anteriores, desistimos. Nesses casos o conselheiro de plantão não vem, ou, se comparece, não resolve nada.

De súbito, veio em minha mente um velho ditado popular: “Deus, me dê coragem para modificar as coisas que posso, humildade para aceitar as que não posso e sabedoria para distinguir umas das outras”.

E assim convenci o comandante da guarnição a adotar a seguinte solução: dentre o pai drogado, a mãe vadia e a avó alcoólatra, naquele momento a criança deveria ficar com quem teve pelo menos a hombridade de nos pedir socorro.

O que me deixou muito triste foi pensar no que se transformará aquela princesinha chamada Isabela daqui a alguns anos...
Fim

Autor: Nivaldo de Carvalho Júnior, 3º Sgt PM - obra escrita em 07/05/2006
Nota: Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou morta, é mera coincidência.

É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal.

(texto já públicado no Universo Policial)

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