Por: José Ricardo
O Sargento Mike estava em casa, tentando curtir o dia de folga. Procurava esquecer do serviço. De repente, o interfone tocou. Sua esposa atendeu.
- Oi.
- É o Soldado Bumark quem tá falando. É da casa do Sargento Mike?
- Sim. Você quer falar com ele.
- Quero. O capitão pediu pra dar um recado pra ele.
- Abri o portão. Pode entrar.
A esposa chamou Mike.
- Levanta aí que Bumark tá querendo falar com você. Disse que é recado do captain.
Mike levantou-se da cama com a cara toda amarrotada. Apesar das circunstâncias, não sentiu raiva por estar sendo incomodado em seu horário de folga; já havia se acostumado com isso. Abriu a porta.
- Entra,Bumark. Aceita um café?
- Não, sargento. Eu só vim dar um recado do capitão. Ele disse pro senhor fazer o relatório.
- Relatório?
- Ele disse que o senhor sabe o que é.
- Ah, é verdade. Achei que ele não estivesse com pressa. Beleza. Entra aí, vamos tomar um café.
- Não não, sargento. Eu vim só pra dar o recado. Desculpe ter incomodado o senhor.
- Esquenta não.
- Eu vou lá então, sargento.
- Beleza. Obrigado.
Bumark se foi.
A esposa de Mike, sem querer, ouviu a conversa dos dois e algo lhe chamou a atenção.
- Amor, parece que Bumark estava com medo.
- Você achou?
- Achei. Ele formou tem pouco tempo?
- Tem. Acho que tem uns dois meses que ele formou.
- Você também era assim quando se formou?
- Assim como?
- É... Com medo dos superiores?
- Era. Talvez até mais. Na verdade, eu nem gosto de lembrar do meu curso de soldado. Saí de lá com ódio e medo.
- Você ainda tem medo?
- Agora, não, mas durante um bom tempo eu tive. Com o passar dos anos, fui vendo que muita coisa que acontece nos cursos são mera encenação. Um teatro. Também eu fui vivenciando certos fatos e percebendo determinadas situações que me fizeram perder até o respeito por alguns superiores. Restou apenas o militarismo. Continência, senhor, meia-volta, permissão para entrar no recinto. Tudo encenação. Se você encarar de forma diferente, você se inferioriza, diminui a si mesmo. Se me tratarem mal, eu trato mal também. Se gritarem comigo, eu grito também. Eu nunca fiz, mas se for preciso, se me tratarem com ignorância, eu mando até pra #$%$#()*&#@! Vou preso, eu sei. Se eu trato todo mundo com educação, porque vão querer me tratar com estupidez?
- O que acontece nos cursos da Military Police pra vocês saírem de lá assim?
- O cara tem duas opções. Ou pede baixa, ou aceita as idiossincrasias dos instrutores. Se você não pede baixa, você tem que aceitar. Certa vez, antes de ir para o curso de sergeants, um lieutenant disse pra mim e pros outros militares que estavam fazendo o TAF para ingresso no curso: “Vocês vão ter que engolir muito sapo. Faz parte.”
- E aí?
- Aí que, ou você aceita os sapos, revoltado e com ódio por dentro, ou pede pra sair. O que você escolheria?
- Depende?
- Você vai perder o emprego ou o aumento do salário proporcionado pela promoção? Então, não tem muita escolha. Tem que engolir os sapos durante o curso...
- Verdade.
- Triste verdade! Eu não acho que isso seja bom. Por exemplo, quando eu chego ao quartel, os cables e soldiers se levantam para me prestar a continência regulamentar. Eu não gosto disso; me sinto mal, porque sei que é tudo encenação, um grande teatro. Eu gosto é de chegar, cumprimentar o pessoal, brincar... O ambiente fica melhor. É até difícil para conversar com uma pessoa se ela toda hora fica me chamando de senhor. Fica parecendo que ela é realmente inferior, algo que não é verdade. Somos todos iguais, independente de graduação ou posto. O que deve existir é o respeito e, acima de tudo, o companheirismo. O principal é o companheirismo. Eu tenho que respeitar o soldier, assim como ele tem que me respeitar, porque é ele quem me salva nos momentos de dificuldade. Ninguém é melhor do que ninguém neste mundo. Uns e outros, para se acharem melhor, inventam teorias ou enganam a si mesmo utilizando-se de entidades abstratas como a aprovação em um concurso, o sofrimento de um curso, insígnias reluzentes no ombro ou na manga da gandola...
- Pra gente que é de fora, tudo parece muito estranho.
- Tentam justificar essa estranheza sob o argumento da hierarquia e disciplina, pilares da instituição - Mike sorri. Depois continua. - Por acaso não existe hierarquia e disciplina em grandes empresas como a Vale, a Petrobrás, a Volkswagen, a Fiat, a Ford, e muitas outras empresas e organizações? Claro que existe, só que de forma diferente. Eu tiro o exemplo do meu pai. Nunca vi ele chamar nenhum chefe de senhor, mas nem por isso ele os trata com desrespeito. Ele até parece ser amigo de muitos.
- Você acha que isso vai mudar um dia?
- Sei lá... Se nada muda, nada muda! Alguém tem que dar o primeiro passo.
Nota: Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.
"É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal.
Diário de PM&BM
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