Hoje estou
sozinho em casa. É aniversário da Camila. Ela vai passar uma semana na casa de
sua mãe. Será bom para ela, apesar de todos os desentendimentos com sua família
ao longo dos anos. Família é família, por mais que se tente cortar os laços,
está no sangue. E no final, querendo ou não, é tudo o que me resta, não importa
o defeito que tenha, a sacanagem que faça, é sempre família. Ela tem sorte, ou
azar de ter a sua por perto. Comigo é diferente.
Estou
cansado, com as narinas entupidas de escapamentos e asfalto. O corpo já não dói
mais, está amortecido depois de uma semana ininterrupta de trabalho. A
criminalidade na cidade até que diminuiu. Nessas horas é que trabalhamos mais.
Engana – se quem pensa que polícia trabalha mais quando prende, ao contrário,
quando há prisões demais, significa que a prevenção falhou. Polícia boa é
aquela que evita o crime, não a que corre atrás dos criminosos. Já fui muito
criticado por conta desse pensamento. Já fui acusado de perseguição. Mas é
assim que tem que funcionar, pressão e mais pressão em cima da malandragem. Não
devemos dar espaço para agirem. E nisso sou bom. O terror psicológico funciona
mais que uma botinada na cara.
Conde,
Vlad, Vamp, Nazista, Terrorista, Demônio. Estou me lixando para adjetivos.
Polícia na rua tem que ter cara de Pitbull com fome ao invés de ficar de braços
cruzados com raiva por ter que trabalhar, como já vi dia desses. Sou contrário
à mulheres na corporação. A maioria se prostitui em troca de uma poltrona
estofada ou um carguinho administrativo. Sempre digo que mulher na polícia tem
que ser macho, arrotar e cuspir na cara de vagabundo. Vejo muitas por aí que
colocam a bundinha no banco da viatura e pensam que estão dando um rolé com
algum playboy na saída da balada. A Camila daria uma excelente policial, tem
sangue nos olhos.
Comprei um
uísque barato, cigarros e não sei se comerei algo. Hoje eu quero beber,
esquecer as ruas, esquecer as perseguições, esquecer os tombos que a vida com freqüência
me dá. Esquecer os discursos hipócritas de comandantes safados, cuja moral é
mais baixa que a de um cafetão. Que trocam uma vagina por um cargo de confiança
e fodem a vida de quem realmente trabalha em nome da moral.
Minha
filha está muito longe, fruto do outro casamento. A saudade é constante.
Infelizmente não tenho como vê-la. Nada que um copo de uísque barato não
afogue, ao som de Amado Batista e bitucas de cigarro atolando o cinzeiro. As
espirais de fumaça me lembram de tantas que já passei na vida. Os corpos que
recolhi, alguns aos pedaços. Os marginais que prendi, as amantes que comi, os
comandos que me fuderam. Teoricamente eu sou um forte candidato a ter um AVC,
mas sei que não será isso que irá me matar, talvez um câncer.
É estranho
a Camila estar de aniversário e não comemorarmos. Acho que é o primeiro
aniversário dela que passamos separados. Não me importo com o meu, afinal, todo
dia eu renasço, como a Fênix. Após cada turno de serviço, quando chego em casa
e percebo que estou inteiro, que tiro minha farda e o fardo que carrego, é como
sair das entranhas da vida e enxergar a luz pela primeira vez.
Penso em
quantas vidas já passaram pelas minhas mãos, quantos salvei e quantos
despachei. Quantos tapas minhas mãos já deram, quantos querem me matar, quantos
me amam. Quantos insultos ouvi e quantos já disse. Quantos tentaram me humilhar
e quantos humilhei. Sim, humilhei muita gente. Não basta bater, prender, tem
que humilhar, fazer sentir na pele o desprezo, tratar como lixo quem trata os
outros como lixo.
Meus
últimos dias de trabalho foram intensos. Não houve troca de tiros, não houve
perseguição, não houve porrada. Absolutamente nada disso. Foram dias de
vigilância constante, como disse, trabalhamos mais quando evitamos crimes. Isso
cansa tanto ou mais que uma noite de correria, de tiros, gritos, sangue na
farda, merda e barro nos coturnos.
Hoje é o
aniversário da Camila. Me chamam de Conde, Vlad ou Vamp. Um policial linha dura
que não dá mole para vagabundo. Hoje eu quero esvaziar a garrafa de uísque
barato, quero deixar que as lágrimas limpem a fuligem dos escapamentos. Ontem,
Camila perdeu o filho que teríamos em fevereiro próximo.
Diário
de PM/BM
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