quinta-feira, 16 de maio de 2013

O Silêncio da Dor




Hoje estou sozinho em casa. É aniversário da Camila. Ela vai passar uma semana na casa de sua mãe. Será bom para ela, apesar de todos os desentendimentos com sua família ao longo dos anos. Família é família, por mais que se tente cortar os laços, está no sangue. E no final, querendo ou não, é tudo o que me resta, não importa o defeito que tenha, a sacanagem que faça, é sempre família. Ela tem sorte, ou azar de ter a sua por perto. Comigo é diferente.



Estou cansado, com as narinas entupidas de escapamentos e asfalto. O corpo já não dói mais, está amortecido depois de uma semana ininterrupta de trabalho. A criminalidade na cidade até que diminuiu. Nessas horas é que trabalhamos mais. Engana – se quem pensa que polícia trabalha mais quando prende, ao contrário, quando há prisões demais, significa que a prevenção falhou. Polícia boa é aquela que evita o crime, não a que corre atrás dos criminosos. Já fui muito criticado por conta desse pensamento. Já fui acusado de perseguição. Mas é assim que tem que funcionar, pressão e mais pressão em cima da malandragem. Não devemos dar espaço para agirem. E nisso sou bom. O terror psicológico funciona mais que uma botinada na cara.

Conde, Vlad, Vamp, Nazista, Terrorista, Demônio. Estou me lixando para adjetivos. Polícia na rua tem que ter cara de Pitbull com fome ao invés de ficar de braços cruzados com raiva por ter que trabalhar, como já vi dia desses. Sou contrário à mulheres na corporação. A maioria se prostitui em troca de uma poltrona estofada ou um carguinho administrativo. Sempre digo que mulher na polícia tem que ser macho, arrotar e cuspir na cara de vagabundo. Vejo muitas por aí que colocam a bundinha no banco da viatura e pensam que estão dando um rolé com algum playboy na saída da balada. A Camila daria uma excelente policial, tem sangue nos olhos.

Comprei um uísque barato, cigarros e não sei se comerei algo. Hoje eu quero beber, esquecer as ruas, esquecer as perseguições, esquecer os tombos que a vida com freqüência me dá. Esquecer os discursos hipócritas de comandantes safados, cuja moral é mais baixa que a de um cafetão. Que trocam uma vagina por um cargo de confiança e fodem a vida de quem realmente trabalha em nome da moral.

Minha filha está muito longe, fruto do outro casamento. A saudade é constante. Infelizmente não tenho como vê-la. Nada que um copo de uísque barato não afogue, ao som de Amado Batista e bitucas de cigarro atolando o cinzeiro. As espirais de fumaça me lembram de tantas que já passei na vida. Os corpos que recolhi, alguns aos pedaços. Os marginais que prendi, as amantes que comi, os comandos que me fuderam. Teoricamente eu sou um forte candidato a ter um AVC, mas sei que não será isso que irá me matar, talvez um câncer.

É estranho a Camila estar de aniversário e não comemorarmos. Acho que é o primeiro aniversário dela que passamos separados. Não me importo com o meu, afinal, todo dia eu renasço, como a Fênix. Após cada turno de serviço, quando chego em casa e percebo que estou inteiro, que tiro minha farda e o fardo que carrego, é como sair das entranhas da vida e enxergar a luz pela primeira vez.

Penso em quantas vidas já passaram pelas minhas mãos, quantos salvei e quantos despachei. Quantos tapas minhas mãos já deram, quantos querem me matar, quantos me amam. Quantos insultos ouvi e quantos já disse. Quantos tentaram me humilhar e quantos humilhei. Sim, humilhei muita gente. Não basta bater, prender, tem que humilhar, fazer sentir na pele o desprezo, tratar como lixo quem trata os outros como lixo.

Meus últimos dias de trabalho foram intensos. Não houve troca de tiros, não houve perseguição, não houve porrada. Absolutamente nada disso. Foram dias de vigilância constante, como disse, trabalhamos mais quando evitamos crimes. Isso cansa tanto ou mais que uma noite de correria, de tiros, gritos, sangue na farda, merda e barro nos coturnos.

Hoje é o aniversário da Camila. Me chamam de Conde, Vlad ou Vamp. Um policial linha dura que não dá mole para vagabundo. Hoje eu quero esvaziar a garrafa de uísque barato, quero deixar que as lágrimas limpem a fuligem dos escapamentos. Ontem, Camila perdeu o filho que teríamos em fevereiro próximo.

 

Por: Roberyk



Diário de PM/BM

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