sábado, 25 de maio de 2013

O Justo e o Correto





- Nem tudo que é justo é correto, e nem tudo que é correto é justo. Sabia desta?

 

- Mas o que é que você está falando? Bebeu? Pegue a da esquerda ali na frente.

 

Fabio riu, arranhou a marcha da viatura quando reduziu da terceira para a segunda. Pegou a estrada à esquerda na bifurcação, a mais esburacada. Meu corpo sacolejava todo, meu ciático fisgava, os gases prestes a escapulir do intestino (maldita comida daquela empresa, acho que colocam alguma porcaria no feijão). Ainda bem que ele se habilitou para conduzir viatura, minha bursite agradeceu. Já não aguentava mais dirigir por doze horas naquelas poeirentas estradas esburacadas do interior do município. O corpo já não é o mesmo de vinte anos atrás, quando tudo era aventura e noitadas. Agora ele reclama de tudo.

 

A coluna reclama dos buracos, do peso do colete, da pistola, dos carregadores sobressalentes, da algema, do apito, do celular, do bloco de anotações, até da caneta. Já o ciático, este ingrato, reclama do cinto que aperta, do revólver e das munições extras – polícia tem que andar com arma reserva sempre, ainda mais nos dias de hoje -. Há vinte anos não tinha tudo isso. Saíamos para a rua apenas com o cinturão, um oitão, uma dúzia de cartuchos e um bastão. Eram outros tempos, bandido respeitava polícia. Hoje não, mudou tudo, vagabundo, além de atirar para matar, ainda tem mais direitos que nós, homens direitos.

 

Tenho pena do Fabio, daqui a dez anos vai estar pior que eu, não há corpo que resista a toda esta parafernália sem reclamar.

 

O pior é que ele acabou de se formar, isso significa que vai adoecer cedo, mais cedo do que eu, que estou com quarenta. Se ele chegar aos trinta e cinco sem uma hérnia de disco, vai ser milagre.

 

- Então? Perguntou Fabio.

 

- Então o quê? Pergunto enquanto acendo um cigarro.

 

- Já pensou?

 

- No quê?

 

- No que te falei.

 

- Sei lá. Você já me falou tantas coisas hoje, tá pior que mulher, não fecha a matraca nunca. Como é que vou saber do que você está falando?

 

- Do justo e do correto. E mulher é a tua mãe.

 

- Lógico que minha mãe é mulher. Se fosse homem, seria meu pai. Olha o bura.....Ai!Caralho! Filho da puta. Tá querendo me ferrar? Sua bicha enlouquecida.

 

- Doeu? Tadinho. Desculpa, não vi o buraco e não sabia que a flor era sensível.

 

- Quem vai ficar sensível vai ser teu rabo a hora que eu te botar de quatro.

 

- Ui!

 

A gargalhada tomou conta da viatura. Assim passávamos a maior parte do tempo durante o serviço. Fazíamos o patrulhamento rural, uma das modalidades da polícia, havia dois meses. Nem sempre foi possível dar atenção a este povo que sustenta o país. A falta de efetivo na corporação sempre foi um cobertor curto. A atenção era voltada para o centro urbano e o campo sempre ficava esquecido pelo poder público. Mas desta vez, pelo menos por enquanto, as coisas haviam mudado um pouco, desde que Fabio e os demais colegas se formaram e reforçaram nosso contingente. O interior estava carente de patrulhamento, muitos assaltos e furtos estavam acontecendo. Disse que estavam porque faz dois meses que não registramos mais esse tipo de ocorrência. Desde que apertamos uns e começamos a rondar a casa de outros, o clima no interior melhorou, as pessoas voltaram a sorrir, a sentirem-se mais seguras. Isso me faz um bem enorme, pois significa que nosso trabalho está sendo bem feito. Para alguns, inclusive colegas, se a guarnição não faz nenhum registro durante o turno, significa que estão se amoitando, se esquivando do serviço. Eu penso o contrário, turno sem ocorrência é sinal de polícia competente nas ruas.

 

- Vai responder ou resolveu fazer greve? Pergunta Fabio enquanto passa com o meu lado da viatura rente a um pé de unha de gato, propositadamente.

 

- Você está a fim de me sacanear. Vamos lá então. O que tu quer saber sobre justo e correto? E espera eu assumir esse volante que o troco vem.

 

- Dizem que nem tudo que é justo é correto e vice e versa. Você concorda?

 

- Depende do ponto de vista.

 

- Por exemplo. Ouvi dizer que não é justo comer uma mulher de quatro, mas é correto, e que comer a mulher na horizontal é justo, mas não é correto. O que você acha?

 

- Você sabe a resposta?

 

- Não.

 

- Então raciocina comigo. Vai aprender hoje, um pouco sobre a teoria da evolução, do Darwin, um pouco de anatomia, biologia e moral.

 

- Tudo isso?

 

- Patrulha rural também é cultura. Por que comer a mulher de quatro não é justo?

 

- Sei lá. Por causa da igreja.

 

- Não. Esqueça a porra da igreja. Pense na mulher nessa posição e o que ocorre com sua vagina ficando assim. Ela fica mais exposta, digamos, mais aberta. Concorda?

 

- É. Faz sentido.

 

- Então, logicamente, não fica justa, pois não há pressão dos lábios e da musculatura. Agora, por que, apesar de não ser justa, é correto?

 

- Muitas mulheres não gostam. Não sei.

 

- Ora. Caro Watson, pense em nós como animais, mamíferos, bípedes e toda aquela viadagem. Por acaso você já viu algum macaco copular deitado? Exceto os Bonobos que são pervertidos.

 

- Bonobos?

 

- É. Bonobos. Li uma reportagem uma vez, putaria geral, mas é outra história. Agora pense, como animal que somos. Naturalmente nossa cópula, originariamente, é feita por trás. Concorda?

 

- O encaixe é mais perfeito. Tem fundamento.

 

- Tem até um filme que mostra isso. Se não me engano, o nome é A Guerra do Fogo. É antigo, mas retrata perfeitamente essa evolução durante o sexo.

 

- Humm! Interessante.

 

- Pois bem, meu jovem aprendiz de feiticeiro. Agora que sabe que o correto não é justo, defina o contrário.

 

- É justo porque a anatomia feminina, digamos, nos engana, fazendo parecer mais apertado. Não é correto porque vai contra a natureza animal?

 

- É por aí.

 

- Eu não tinha pensado nessa questão, não dessa maneira.

 

- Agora que você está diplomado em Darwin, responda uma pergunta, você se considera justo ou correto?

 

- Está querendo me aplicar? To fora.

 

- Larga de ser bobo. Vou reformular, esquece o sexo. Você, como policial, se considera justo u correto? Encosta ali que eu quero mijar.

 

- Me considero justo. Não esquece, não adianta balançar, o último pingo é sempre da cueca.

 

Depois de devolver para a terra o que é da terra, e à cueca o que é da cueca, acendi um cigarro e fiquei admirando os morros ao longe, o silêncio quebrado apenas por alguns pássaros. Aquela calmaria toda parecia outro mundo, totalmente diferente do centro urbano, do caos, do estresse, das buzinas, dos esgotos. Olhei para o Fabio e perguntei.

 

- Então, pelo que entendi você é um policial justo? Quer dizer que se encontrarmos um vago que acabou de cometer um crime, não o conduziríamos até a Delegacia, mesmo que este seja o procedimento padrão e correto da polícia?

 

- Depende do caso.

 

- Não pode haver dependências. Você acabou de afirmar que há dois pesos e duas medidas. Se você fizer o que acha que é justo, certamente será punido e talvez expulso da corporação por contrariar as normas institucionais e os procedimentos corretos para os casos. Por outro lado, é justo mandar um vagabundo irrecuperável para a cadeia, pela centésima vez, para que ele passe um tempo comendo, bebendo, engordando, tomando remédio. Tudo de graça e à custa dos trabalhadores? Ou o justo é fazer com que ele, um desses xibungos irrecuperáveis que temos por aí, que a única coisa que fazem é roubar para comprar droga, sinta, ou leve um castigo que o deixe pelo menos uns três dias de cama?

 

Fomos interrompidos pelo rádio da viatura que anunciava um assalto no centro da cidade. O interlocutor informava que houve troca de tiros e que um colega havia morrido, alvejado pelos bandidos que fugiram em um gol vermelho. Imediatamente embarcamos na viatura e fomos para uma encruzilhada para montarmos uma barreira enquanto acompanhávamos a perseguição, que se dirigia para nosso lado.

 

Em determinado momento, a viatura que estava perseguindo os bandidos informou que os havia perdido em uma estrada do interior.

 

Repentinamente avistamos um veículo em alta velocidade vindo em nossa direção. Disse ao Fabio para procurar abrigo atrás de uma árvore, afastado da viatura. Quando o veículo se aproximou, atravessei a viatura no meio da estrada e saltei, procurando abrigo. Ouvimos os tiros estilhaçando os vidros e perfurando a lataria. O gol vermelho não diminuiu a velocidade e ao tentar desviar da viatura, desgovernou-se e capotou, bem na nossa frente. Dois ocupantes saíram do carro com arma em punho. Alvejei um deles que caiu sem vida no meio da estrada. O outro largou a arma e levantou os braços gritando.

 

- Não atira! Não atira!

 

Fabio se aproximou com sua pistola em punho. Enquanto isso eu fui olhar o terceiro ocupante do veículo. Ele estava agonizando preso às ferragens. Não sei como aconteceu, o cinto de segurança estava pressionando seu pescoço. Ele respirava com dificuldade. Lembrei que eu tinha um canivete no meu cinturão. Segurei o cinto de segurança e puxei. Não demorou muito para que aquele homem parasse de respirar.

 

Parei ao lado de Fabio, que continuava com o bandido na mira.

 

- Então, Fabio. Justo ou correto?

 

 

 

Por: Roberyk

 

 

 

Diário de PM/BM


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