- Nem tudo que é justo é correto, e nem tudo que é
correto é justo. Sabia desta?
- Mas o que é que você está falando? Bebeu? Pegue a
da esquerda ali na frente.
Fabio riu, arranhou a marcha da viatura quando
reduziu da terceira para a segunda. Pegou a estrada à esquerda na bifurcação, a
mais esburacada. Meu corpo sacolejava todo, meu ciático fisgava, os gases
prestes a escapulir do intestino (maldita comida daquela empresa, acho que
colocam alguma porcaria no feijão). Ainda bem que ele se habilitou para
conduzir viatura, minha bursite agradeceu. Já não aguentava mais dirigir por
doze horas naquelas poeirentas estradas esburacadas do interior do município. O
corpo já não é o mesmo de vinte anos atrás, quando tudo era aventura e
noitadas. Agora ele reclama de tudo.
A coluna reclama dos buracos, do peso do colete, da
pistola, dos carregadores sobressalentes, da algema, do apito, do celular, do
bloco de anotações, até da caneta. Já o ciático, este ingrato, reclama do cinto
que aperta, do revólver e das munições extras – polícia tem que andar com arma
reserva sempre, ainda mais nos dias de hoje -. Há vinte anos não tinha tudo
isso. Saíamos para a rua apenas com o cinturão, um oitão, uma dúzia de
cartuchos e um bastão. Eram outros tempos, bandido respeitava polícia. Hoje
não, mudou tudo, vagabundo, além de atirar para matar, ainda tem mais direitos
que nós, homens direitos.
Tenho pena do Fabio, daqui a dez anos vai estar
pior que eu, não há corpo que resista a toda esta parafernália sem reclamar.
O pior é que ele acabou de se formar, isso
significa que vai adoecer cedo, mais cedo do que eu, que estou com quarenta. Se
ele chegar aos trinta e cinco sem uma hérnia de disco, vai ser milagre.
- Então? Perguntou Fabio.
- Então o quê? Pergunto enquanto acendo um cigarro.
- Já pensou?
- No quê?
- No que te falei.
- Sei lá. Você já me falou tantas coisas hoje, tá
pior que mulher, não fecha a matraca nunca. Como é que vou saber do que você
está falando?
- Do justo e do correto. E mulher é a tua mãe.
- Lógico que minha mãe é mulher. Se fosse homem,
seria meu pai. Olha o bura.....Ai!Caralho! Filho da puta. Tá querendo me
ferrar? Sua bicha enlouquecida.
- Doeu? Tadinho. Desculpa, não vi o buraco e não
sabia que a flor era sensível.
- Quem vai ficar sensível vai ser teu rabo a hora
que eu te botar de quatro.
- Ui!
A gargalhada tomou conta da viatura. Assim passávamos
a maior parte do tempo durante o serviço. Fazíamos o patrulhamento rural, uma
das modalidades da polícia, havia dois meses. Nem sempre foi possível dar
atenção a este povo que sustenta o país. A falta de efetivo na corporação
sempre foi um cobertor curto. A atenção era voltada para o centro urbano e o
campo sempre ficava esquecido pelo poder público. Mas desta vez, pelo menos por
enquanto, as coisas haviam mudado um pouco, desde que Fabio e os demais colegas
se formaram e reforçaram nosso contingente. O interior estava carente de
patrulhamento, muitos assaltos e furtos estavam acontecendo. Disse que estavam
porque faz dois meses que não registramos mais esse tipo de ocorrência. Desde
que apertamos uns e começamos a rondar a casa de outros, o clima no interior
melhorou, as pessoas voltaram a sorrir, a sentirem-se mais seguras. Isso me faz
um bem enorme, pois significa que nosso trabalho está sendo bem feito. Para
alguns, inclusive colegas, se a guarnição não faz nenhum registro durante o
turno, significa que estão se amoitando, se esquivando do serviço. Eu penso o
contrário, turno sem ocorrência é sinal de polícia competente nas ruas.
- Vai responder ou resolveu fazer greve? Pergunta
Fabio enquanto passa com o meu lado da viatura rente a um pé de unha de gato,
propositadamente.
- Você está a fim de me sacanear. Vamos lá então. O
que tu quer saber sobre justo e correto? E espera eu assumir esse volante que o
troco vem.
- Dizem que nem tudo que é justo é correto e vice e
versa. Você concorda?
- Depende do ponto de vista.
- Por exemplo. Ouvi dizer que não é justo comer uma
mulher de quatro, mas é correto, e que comer a mulher na horizontal é justo,
mas não é correto. O que você acha?
- Você sabe a resposta?
- Não.
- Então raciocina comigo. Vai aprender hoje, um
pouco sobre a teoria da evolução, do Darwin, um pouco de anatomia, biologia e
moral.
- Tudo isso?
- Patrulha rural também é cultura. Por que comer a
mulher de quatro não é justo?
- Sei lá. Por causa da igreja.
- Não. Esqueça a porra da igreja. Pense na mulher
nessa posição e o que ocorre com sua vagina ficando assim. Ela fica mais
exposta, digamos, mais aberta. Concorda?
- É. Faz sentido.
- Então, logicamente, não fica justa, pois não há
pressão dos lábios e da musculatura. Agora, por que, apesar de não ser justa, é
correto?
- Muitas mulheres não gostam. Não sei.
- Ora. Caro Watson, pense em nós como animais,
mamíferos, bípedes e toda aquela viadagem. Por acaso você já viu algum macaco
copular deitado? Exceto os Bonobos que são pervertidos.
- Bonobos?
- É. Bonobos. Li uma reportagem uma vez, putaria
geral, mas é outra história. Agora pense, como animal que somos. Naturalmente
nossa cópula, originariamente, é feita por trás. Concorda?
- O encaixe é mais perfeito. Tem fundamento.
- Tem até um filme que mostra isso. Se não me
engano, o nome é A Guerra do Fogo. É antigo, mas retrata perfeitamente essa
evolução durante o sexo.
- Humm! Interessante.
- Pois bem, meu jovem aprendiz de feiticeiro. Agora
que sabe que o correto não é justo, defina o contrário.
- É justo porque a anatomia feminina, digamos, nos
engana, fazendo parecer mais apertado. Não é correto porque vai contra a
natureza animal?
- É por aí.
- Eu não tinha pensado nessa questão, não dessa
maneira.
- Agora que você está diplomado em Darwin, responda
uma pergunta, você se considera justo ou correto?
- Está querendo me aplicar? To fora.
- Larga de ser bobo. Vou reformular, esquece o
sexo. Você, como policial, se considera justo u correto? Encosta ali que eu
quero mijar.
- Me considero justo. Não esquece, não adianta
balançar, o último pingo é sempre da cueca.
Depois de devolver para a terra o que é da terra, e
à cueca o que é da cueca, acendi um cigarro e fiquei admirando os morros ao
longe, o silêncio quebrado apenas por alguns pássaros. Aquela calmaria toda
parecia outro mundo, totalmente diferente do centro urbano, do caos, do
estresse, das buzinas, dos esgotos. Olhei para o Fabio e perguntei.
- Então, pelo que entendi você é um policial justo?
Quer dizer que se encontrarmos um vago que acabou de cometer um crime, não o
conduziríamos até a Delegacia, mesmo que este seja o procedimento padrão e
correto da polícia?
- Depende do caso.
- Não pode haver dependências. Você acabou de
afirmar que há dois pesos e duas medidas. Se você fizer o que acha que é justo,
certamente será punido e talvez expulso da corporação por contrariar as normas
institucionais e os procedimentos corretos para os casos. Por outro lado, é
justo mandar um vagabundo irrecuperável para a cadeia, pela centésima vez, para
que ele passe um tempo comendo, bebendo, engordando, tomando remédio. Tudo de
graça e à custa dos trabalhadores? Ou o justo é fazer com que ele, um desses
xibungos irrecuperáveis que temos por aí, que a única coisa que fazem é roubar
para comprar droga, sinta, ou leve um castigo que o deixe pelo menos uns três
dias de cama?
Fomos interrompidos pelo rádio da viatura que
anunciava um assalto no centro da cidade. O interlocutor informava que houve
troca de tiros e que um colega havia morrido, alvejado pelos bandidos que
fugiram em um gol vermelho. Imediatamente embarcamos na viatura e fomos para
uma encruzilhada para montarmos uma barreira enquanto acompanhávamos a
perseguição, que se dirigia para nosso lado.
Em determinado momento, a viatura que estava
perseguindo os bandidos informou que os havia perdido em uma estrada do
interior.
Repentinamente avistamos um veículo em alta
velocidade vindo em nossa direção. Disse ao Fabio para procurar abrigo atrás de
uma árvore, afastado da viatura. Quando o veículo se aproximou, atravessei a
viatura no meio da estrada e saltei, procurando abrigo. Ouvimos os tiros
estilhaçando os vidros e perfurando a lataria. O gol vermelho não diminuiu a
velocidade e ao tentar desviar da viatura, desgovernou-se e capotou, bem na
nossa frente. Dois ocupantes saíram do carro com arma em punho. Alvejei um
deles que caiu sem vida no meio da estrada. O outro largou a arma e levantou os
braços gritando.
- Não atira! Não atira!
Fabio se aproximou com sua pistola em punho.
Enquanto isso eu fui olhar o terceiro ocupante do veículo. Ele estava
agonizando preso às ferragens. Não sei como aconteceu, o cinto de segurança
estava pressionando seu pescoço. Ele respirava com dificuldade. Lembrei que eu
tinha um canivete no meu cinturão. Segurei o cinto de segurança e puxei. Não
demorou muito para que aquele homem parasse de respirar.
Parei ao lado de Fabio, que continuava com o
bandido na mira.
-
Então, Fabio. Justo ou correto?
Por: Roberyk
Diário
de PM/BM
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