Quando
consegui escrever estas primeiras palavras, o relógio marcava 23h51 do dia 17
de novembro de 2010, pois eu estava imóvel diante do computador desde as 22h20,
assolado por um sentimento que me dominou desde a leitura, pela manhã, da
notícia sobre as mortes dos Agentes Mauro Lobo e Leonardo Matsunaga, e o estado
de saúde crítico do Agente Charles.
Leonardo
Matsunaga frequentou o curso de formação policial no primeiro semestre deste
ano, mas sua fisionomia me escapa da memória. Porém, o que não esqueço é que
fui um dos professores de tiro do APF Leonardo na ANP, sendo inevitável uma
análise íntima sobre o que se poderia fazer para melhorar o treinamento
policial para dificultar tragédias como a de hoje.
Então, me
recordei de um texto não publicado que eu havia escrito em 2008, por ocasião do
quinto aniversário da morte de outro Agente de Polícia Federal, o APF Klaus
Henrique.
Inicialmente,
peço desculpa aos colegas se o que escrevo agora parece inoportuno diante de
tamanha tristeza que toma conta de nossos corações, mas já perdemos o APF Edson
Martins Matsunaga, o APF Leonardo Maia Fonseca, o APF Roberto Simões de
Mentzingen, o APF José Humberto Figueiras, o APF Sérgio Augusto Zambone, o EPF
Rônei Cândido Resende, o APF Armindo João da Silva, o APF Guilherme Auad
Mourad, o APF Oswaldo Veras, o APF Leandro Carlos Dionísio, dentre outros.
Todos mortos em situações que poderiam ter sido analisadas para promover o
aprimoramento da capacidade de autodefesa de todo Policial Federal.
Estou certo
de que o artigo é tão atual agora, quanto será em 17 de novembro de 2015,
aniversário de cinco anos da morte de Mauro Lobo e Leonardo Matsunaga.
Em 25 de setembro de
2003, o bando do criminoso Cleiton Araquan assaltou uma agência bancária na
cidade de Pilão Arcado/BA.
Durante o confronto com
a polícia, Cleiton e Valter Araquan (seu primo e braço direito) foram mortos.
No entanto, isso custou
a vida do Policial Federal Klaus Henrique, então com 27 anos de idade, atingido
por um tiro de fuzil enquanto operava a metralhadora do helicóptero usado na
operação policial. No tiroteio também foram feridos os Policiais Federais
Henrique, Tolentino e Aziz.
Logo depois, se seguiu
outra operação policial para localizar e prender o restante da quadrilha.
Então, mais um assaltante foi morto e outros cinco foram feridos, segundo
informações extra-oficiais.
Um Policial Federal
morreu e três foram feridos, e isso é TUDO que sei sobre o episódio após
pesquisar na Internet.
Entretanto, em 11 de
abril de 1986, oito policiais do FBI vivenciaram algo semelhante. A diferença é
que eu sei mais sobre o episódio ocorrido em outro país 24 anos atrás do que
sobre o evento que aconteceu há sete anos na minha própria nação.
O TIROTEIO DE MIAMI,
como ficou conhecido, foi um confronto entre esses oito agentes e dois
criminosos (bem armados e treinados) que ocorreu em Miami, no Estado da
Flórida. No confronto foram mortos os agentes Gerald Dove (30 anos) e Benjamin
P. Grogan (53), bem como os dois criminosos, Willian Russel Matix (34) e
Michael Lee Platt (32). Além disso, outros cinco policiais foram feridos
gravemente durante o combate.
O incidente ficou
negativamente marcado na história do FBI, e por isso foi bem estudado ao longo
dos anos, mudando de vez a concepção do uso de armas curtas por todas as
polícias americanas.
Apesar de os policiais
superarem os criminosos na escala de quatro para um, os agentes foram recebidos
por tiros de fuzil e espingarda, e não foram capazes de reagir efetivamente.
Embora também atingidos diversas vezes durante o tiroteio, os criminosos
continuaram a ferir e matar os policiais.
Há mais de seis meses os
agentes investigavam uma série de roubos a bancos (Isso lhe parece familiar?).
Os assaltos ocorriam somente numa sexta-feira de cada mês, e os suspeitos
usavam um veículo Chevrolet Monte Carlo.
Pouco antes da
sexta-feira do dia 11 de abril, uma mulher notificou a polícia sobre o
desaparecimento do irmão, informando que o mesmo possuía um Chevrolet Monte
Carlo. Ao encontrarem o corpo do proprietário do veículo com múltiplos
ferimentos provocados por arma de fogo, os agentes vincularam o homicídio com
as ações dos dois criminosos, acreditando que eles utilizariam o carro da
vítima no próximo roubo.
O escritório do FBI em
Miami acreditava que os criminosos possuíam um padrão de comportamento:
utilizavam o mesmo tipo de carro, eram extremamente violentos e assaltavam as
agências bancárias sempre às sextas-feiras. Contudo, as identidades dos
suspeitos ainda eram desconhecidas.
Os dois criminosos,
Willian Matix e Michael Platt, se conheceram enquanto serviam o Exército
Americano. O primeiro foi cozinheiro do Corpo de Fuzileiros Navais e da Polícia
do Exército da 101ª Divisão Paraquedista. Já o segundo serviu como paraquedista
das forças especiais do exército e como policial militar da mesma 101ª Divisão
Paraquedista. Os dois se casaram com mulheres que morreram sob circunstâncias
até hoje não esclarecidas. Eles também administravam uma pequena empresa de
jardinagem que era usada como fachada para a lavagem do dinheiro roubado.
No dia 11 de abril de
1986, equipes totalizando quatorze agentes do FBI conduziram buscas pelas ruas
dos bairros nos quais os criminosos costumavam agir na tentativa de
localizá-los NUM GOLPE DE SORTE, uma vez que se tratava de uma
sexta-feira e já fazia quase um mês do último roubo.
Às 9h os agentes Grogan
e Dove localizaram o Monte Carlo e comunicaram o fato ao chefe da equipe, que
por sua vez, determinou que os demais agentes se juntassem à perseguição.
Assim, os agentes Manauzzi, Mireles e Hanlon se juntaram à perseguição seguindo
Grogan e Dove. Contudo, os suspeitos perceberam o que estava acontecendo e
contornaram um quarteirão, confirmando a suspeita de que estavam sendo seguidos
pela polícia. Nesse instante, o agente McNeil (chefe da equipe) cruzou com o
carro dos criminosos e percebeu que Michael Platt preparava uma carabina Ruger
Mini-14 calibre .223 Remington. Dove e Grogan solicitaram autorização ao agente
McNeil para realizar a abordagem. Então, McNeil considerou a superioridade
numérica, o reforço a caminho, e que tanto Dove e Grogan eram certificados pela
SWAT, sendo que Grogan era considerado o melhor atirador do FBI em Miami.
Porém, esse reforço (no
total de seis agentes) não conseguiu chegar ao local a tempo porque os
policiais não conseguiram compreender o endereço transmitido, via rádio, pela
equipe que estava na perseguição.
Com a autorização para a
abordagem, Dove e Grogan tentaram bater a viatura no eixo traseiro do carro dos
criminosos para que ele derrapasse (Manobra PIT ou Pursuit Intervention
Technique). Mas a manobra falhou, e na colisão com o carro dos bandidos, Grogan
perdeu seus óculos de grau. Imediatamente, Manauzzi fez a segunda tentativa e
conseguiu acertar o carro dos criminosos que saiu da pista e colidiu numa
árvore no estacionamento de uma empresa. Nessa batida, a arma de Manauzzi (que
estava no assento) caiu no vão da porta direita. Após a batida, a viatura de
Manauzzi ficou lado a lado com o Monte Carlo, e antes que ele pudesse recuperar
sua arma teve que deixar a viatura rapidamente porque foi atingido pelos
disparos de Michael Platt (passageiro - que ainda estava dentro do carro com
sua carabina .223).
Dove e Grogan (que mal
podia enxergar) pararam atrás do veículo dos criminosos e saíram da viatura.
Enquanto Platt atirava no agente Manauzzi, Matix (motorista - também ainda
dentro do carro, mas com o corpo parcialmente para fora) fez um disparo com uma
espingarda calibre 12 contra Dove e Grogan. O agente McNeil parou sua viatura e
se aproximou do carro de Manauzzi, e utilizando o bloco do motor como
barricada, disparou seis vezes na direção de Matix, o atingindo duas vezes.
Grogan também acertou um tiro em Matix. Ferido três vezes (na cabeça, no
pescoço e no antebraço direito), Matix se debruçou sobre o volante e perdeu a
consciência até quase o final do tiroteio.
Enquanto McNeil atirava
em Matix, os agentes Mireles e Hanlon deixavam a viatura e iam em direção aos
colegas, porém Hanlon havia perdido sua primeira arma porque o carro em que
estava havia batido contra um muro de concreto do outro lado da rua. Hanlon,
então, utilizou seu revólver reserva para auxiliar Dove e Grogan que ainda
disparavam contra Matix e Platt. Mireles correu em direção ao agente McNeil,
mas foi logo atingido no antebraço esquerdo por um projétil .223.
Assim que McNeil
realizou seus disparos contra Matix, foi atingido gravemente na mão direita por
um disparo efetuado por Platt. Com o revólver vazio, McNeil virou-se para sua
viatura, recarregou sua arma com mais dois cartuchos quando viu uma espingarda
calibre 12 no assento de trás. Mas ao tentar alcançá-la foi atingindo no
pescoço por outro projétil .223. Dessa vez, McNeil tombou e ficou paralisado
durante o restante do tiroteio. O agente McNeil não conseguiu carregar
completamente seu revólver porque um grande volume de sangue escorreu para
dentro das câmaras do tambor, tornando a recarga impossível.
Até esse momento,
Michael Platt ainda estava dentro do carro, mas já havia incapacitado os
agentes Manauzzi, Mireles e McNeil enquanto atirava pela janela do motorista
por cima do corpo do comparsa.
Como Platt não conseguiu
abrir a porta do carro, ele saiu pela janela do lado direito. Nesse instante,
ele foi atingido por quatro projéteis 9 mm. Um deles atingiu as costas de Platt
e foi disparado pelo agente Risner que juntamente com Orrantia atiravam a cerca
de 30 m de distância a partir de uma posição barricada do outro lado da rua. Os
outros três tiros (no braço direito, na coxa direita e no pé esquerdo) foram
realizados por Dove. O tiro de Dove que acertou o braço direito de Platt
atravessou o pulmão e parou a dois centímetros do coração.
O legista, que após o
confronto examinou o corpo de Michael Platt, determinou que o projétil que
atingiu o pulmão foi o ferimento fatal que conduziria a morte do criminoso,
mesmo se ele recebesse os primeiros socorros. No entanto, esse ferimento não
foi capaz de eliminar imediatamente a ameaça representada por Platt que
continuou atirando enquanto caminhava na direção de Dove, Hanlon e Grogan que
estavam protegidos pelo porta-malas da viatura. Platt foi atingido mais duas
vezes por Orrantia e/ou Risner durante esse trajeto. Então, Platt virou-se para
Risner e Orrantia atingindo este último com fragmentos de projéteis .223.
Durante o tiroteio, Risner disparou 13 ou 14 tiros e Orrantia cerca de 12.
O agente Hanlon disparou
todos os cinco tiros, mas quando tentava recarregar seu revólver, viu Platt
apontar a carabina para sua cabeça. Misteriosamente, Platt mudou de ideia e
atirou contra a mão direita de Hanlon que se jogou debaixo do para-choque
traseiro da viatura na tentativa de se proteger, mesmo assim, ainda sendo
atingindo na virilha. Quando se preparava para receber o terceiro tiro, Hanlon
ouviu Grogan gritar “Ai, meu Deus!”. Platt então disparou um tiro contra o
tórax de Grogan, que morreu no local, e quando se preparava para atirar
novamente em Hanlon percebeu a presença de Dove no lado do motorista da
viatura. E assim, disparou duas vezes contra a cabeça de Dove. Até aqui, Grogan
havia disparado nove tiros e Dove 20 tiros, que antes de ser morto tentava
recarregar ou sanar uma pane na sua pistola.
Depois de matar os dois
agentes, Platt ainda disparou diversas vezes contra Orrantia e Risner. Mas ao
abrir a porta da viatura dos policiais mortos, o criminoso foi atingido por
disparos realizados por Mireles que usava uma espingarda calibre 12 com apenas
um dos braços, já que seu lado esquerdo estava paralisado em função do
ferimento ocorrido no início do confronto.
Em algum momento durante
o tiroteio, Matix recobrou a consciência e juntou-se ao comparsa dentro da
viatura de Dove e Grogan. Enquanto isso, Mireles disparava seu quinto e último
tiro com a espingarda.
Dentro da viatura, Platt
e Matix tentavam dar partida na ignição ao passo que Mireles se levantava
apoiado na espingarda, sacava seu revólver, e caminhando com dificuldade, se
aproximou dos dois criminosos. À queima-roupa, ele disparou seis vezes
atingindo dois tiros em Platt (um na cabeça e outro no peito, totalizando 12
ferimentos) e três tiros em Matix (todos no rosto, somando seis ferimentos).
O tiroteio envolveu 10
pessoas: dois criminosos e oito agentes do FBI. De todos, somente um policial
saiu ileso do confronto. Ao todo, os agentes realizaram aproximadamente 78
disparos e os criminosos 49 (Matix um e Platt 48).
Exames toxicológicos
demonstraram que a capacidade de sobreviver aos múltiplos ferimentos causados
por armas de fogo não havia sido alcança por meio do consumo de drogas ou
bebidas alcoólicas.
O episódio que durou
aproximadamente quatro minutos foi DETALHADAMENTE INVESTIGADO COM A
ELABORAÇÃO DE UM RELATÓRIO DE 656 PÁGINAS (disponível no site do FBI). Em
setembro de 1987, esse incidente foi encaminhado ao Conselho Consultivo sobre
Armas do FBI que conduziu uma avaliação das pistolas utilizadas pelo órgão.
Como a tarefa era abrangente e complexa, o FBI CONVIDOU ESPECIALISTAS
RENOMADOS para participarem do Seminário sobre Ferimentos Balísticos,
realizado na Academia do FBI.
Após o seminário, o FBI MUDOU
AS ARMAS, AS MUNIÇÕES, OS CALIBRES, OS PROCEDIMENTOS
OPERACIONAIS E O TREINAMENTO DE TIRO NA ACADEMIA. O local do confronto
recebeu uma placa em homenagem aos policiais mortos e as ruas receberam os
nomes destes agentes, sendo que o evento é lembrado até hoje. Ou seja, os
poucos minutos daquela manhã de sexta-feira tiveram um forte impacto no que o
FBI é hoje.
Sem dúvida, a lição
aprendida naquele dia tem salvo as vidas de muitos policiais; lição que
transformou o treinamento e as táticas policiais (por exemplo, os policiais são
orientados a atirar até que o agressor caia, pois é o único sinal aparente de
que houve a incapacitação. E não importa quantos tiros sejam necessários para
que isso ocorra, pois a segurança dos policiais está em primeiro lugar).
Logo após o tiroteio, os
agentes do FBI receberam pistolas que substituíram os antigos revólveres que
muitos ainda utilizavam na época (em nome de uma economia de verbas obtusa, os
policiais eram obrigados a portar revólveres .357 Magnum, mas com munição .38
SPL). O treinamento de tiro na academia foi melhorado incorporando cenários
mais realistas, além da inclusão do estudo a respeito dos efeitos mentais e
fisiológicos do estresse durante confrontos armados. O confronto já foi tema de
um filme (In the Line of Duty: The FBI Murders 1988) e de um documentário
patrocinado pelo Discovery Channel (Os arquivos do FBI). Tudo isso se deve ao
exaustivo estudo de caso conduzido pela polícia federal americana, até como
forma de HONRAR OS POLICIAIS MORTOS E FERIDOS.
E aqui eu reservo minhas
esperanças para tomar conhecimento de um estudo de caso sobre o Tiroteio de
Pilão Arcado. Mas agora eu também preciso esperar o estudo sobre o Tiroteio de
Codajás.
Infelizmente, quanto
mais o tempo passa, mais as informações sobre confrontos envolvendo policiais
brasileiros se perdem, e com elas a possibilidade de se aprender com as
situações que ceifaram as vidas daqueles homens que deram suas últimas medidas
de devoção ao trabalho policial.
Autor: Humberto Wendling é Agente de Polícia
Federal e Professor de Armamento e Tiro
Diário de PM/BM
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