A avenida era movimentada. Mesmo possuindo duas
vias, sempre estava abarrotada de veículos. Às suas margens, inúmeros
restaurantes pomposos e lojas refinadas davam uma ideia do tipo de público que
transitava por ela. Ainda assim, nada impedia a presença das crianças
maltrapilhas nos semáforos, fazendo caras e bocas a fim de sensibilizar os
motoristas. Algumas arriscavam números circenses, na ilusão de achar que
malabarismo na faixa de pedestre é melhor do que mendigar.
Os veículos sempre com pressa. A imprudência –
disfarçada na “falta de tempo” – podia ser vista claramente nos carros
importados que “cortavam” o sinal vermelho, nas ultrapassagens pela direita ou
mesmo nos retornos proibidos. Era nesse cenário que o soldado Cério* tirava
diariamente seus serviços. Ele fazia parte do efetivo do trânsito, que dentro
da força policial é o setor mais conhecido por casos de corrupção (talvez por
ser o mais assediado). Geralmente pequenos desvios de condutas que seduziam
alguns policiais com suas ofertas inescrupulosas. Acontece que nem todos eram
assim, para o azar de muito “cidadão de bem”.
Desse modo, o soldado Cério seguia com sua rotina.
Ele era famoso por ser “caxias”, que no jargão militar pode ser entedido como o
policial correto, avesso às “facilidades” das ruas. Justamente por sua caixagem
que começaram a surgir os problemas. Seus colegas comentavam que sua caneta era
“afiada” demais. O que deveria ser um exemplo a ser seguido, normalmente era
motivo para comentários irônicos. Todo serviço, era quase certo o
preenchimento do talão de multas por completo. Se a polícia pagasse por
produção, sem dúvidas ele teria os melhores rendimentos.
Certa vez, uma senhora passou conduzindo seu
veículo ao mesmo tempo em que conversava ao telefone. Não deu outra.
- Piiiiiiiiiiiiiiii!
Lá estava o soldado Cério, que parecia ter olhos de
águia na hora de identificar as placas dos veículos. Após o silvo do apito, a
mulher retorna sua atenção para o trânsito e percebe pelo retrovisor que o
guarda rabiscava algo em sua prancheta. Ela decide voltar.
- Boa tarde seu guarda. Por acaso o senhor está me
multando?
- Boa tarde, não era a senhora que falava ao
telefone enquanto dirigia?
- É que era uma emergência, não pude deixar de
atender.
- Bom, eu também não posso deixar de multá-la.
Espero que a senhora compreenda que é meu trabalho.
- Ora, deixe disso. Eu não atropelei ninguém! Foi
só uma ligação rapidinha, por acaso eu fiz alguma barbeiragem?
- Senhora, é apenas uma multa. O valor acredito que
não será problema, a julgar pelo tipo de seu carro. E os pontos não serão
suficientes para perder sua habilitação.
- Você sabe quem é o meu marido?
- Não! Também não estou curioso.
A mulher, percebendo que não conseguiria
“sensibilizar” o policial, decide ir embora resmungando algo.
No final do expediente, já no seu batalhão, é o
comandante quem resolve conversar com ele.
- Cério, por que você foi brigar com a mulher do
deputado Argônio*?
- Major, não briguei com ninguém.
- Porra, Cério, então por que o deputado me ligou
puto dizendo que um policial multou sua esposa e que ainda foi grosso com ela!?
- Sinceramente, não sei. Ela queria que eu
desfizesse um procedimento e o senhor sabe que essas coisas não tem volta.
- Caralho, assim você quer me fuder! Deixa de ser
radical. Qual foi o motivo?
- Ela passou por mim dirigindo enquanto estava no
celular.
- Cacete! Que besteira, você mete a caneta por
qualquer bobagem. Deixa rolar… A gente tem mais com o que se preocupar do que
madame dirigindo e falando no telefone. Maneira com esses rabiscos!
- Major, é o seguinte: o senhor me conhece, não sou
de procurar serviço. Mas também não faço vista grossa. É muita desmoralização
as pessoas passarem em frente a um policial do trânsito e ainda cometerem
irregularidades. Meu trabalho não é esse? Se não fosse pra fazer nada, pra quê
eu fico lá todo santo dia plantado naquela avenida debaixo de um sol escaldante!?
- Você me entendeu, maneira aí. Tem coisas que a
gente não precisa levar tão a sério. Além disso, o deputado é amigo meu, tem
apoiado a polícia...
- Sei...
- Pega leve, Cério! Pega leve!
Alguns serviços e multas depois, Cério se depara
com uma colisão. Responsável por fazer o laudo técnico, ouvir testemunhas e
envolvidos, bem como desenhar o croqui (esboço de desenho que indica o
posicionamento dos veículos), entre outras coisas.
Um dos motoristas, ao perceber que havia causado o
acidente, e ainda assim não estava disposto a arcar com as consequências de sua
barbeiragem, tenta “persuadir” o policial, que se faz de desentendido para
evitar medidas mais drásticas. Insistente, o condutor do veículo resolve
utilizar da influência de seu pai, pois lembrara que sua família é amiga do
major, comandante da polícia de trânsito. Pouco depois o celular do guarda
toca. Era o oficial.
- Cério, é o seguinte. Eu sei como você trabalha,
mas esse menino aí é gente minha. Dê um jeito no problema dele. Isso não é um pedido,
é uma ordem! Ouviu?
- Comandante, farei o que estiver ao meu alcance.
Persuasões, interesses, intimidações… Nesse jogo as
palavras devem ser ditas com cuidado. As ações, cautelosas. “O que eu faço?”
pensa o policial que se vê entre a cruz e a espada. Não há maneira de ajudar o
imprudente motorista sem prejudicar outras pessoas, além de não ser ético é
ilegal. Atender a determinação do major é ir contra todos os seus princípios.
Até que ele decide.
- Que se foda.
Cumpre sua obrigação, faz tudo como determina a
Lei, independente do que anseava seu superior. Mas ele estava ciente que dessa
vez não passaria em branco. Apesar da consciência tranquila, certamente
sofreria represálias. Sabia que dificilmente o major poderia atingi-lo
instaurando algum procedimento que comprovasse seu desvio de conduta. No
entanto, quem conhece as entranhas do sistema sabe que – de um jeito ou de
outro – as retaliações atingem àqueles que batem de frente. No caso do soldado,
transferência para um batalhão situado em outra cidade, distante de sua
residência, fato que alteraria toda sua rotina.
Sem gozar do mesmo prestígio nos bastidores, restou
a Cério reorganizar sua vida para se adaptar ao novo local de trabalho. Numa
mistura de revolta, insatisfação e impotência ele se questiona se tudo isso
vela a pena. O que ganhara em troca durante anos de idoneidade? Recompõe-se,
aceita de maneira resignada sua mudança e se convence que sua dignidade e honra
não foram abaladas. Paralelo a isso, o motorista infrator – com a ajuda do major
– conseguiu minimizar sua responsabilidade na colisão. Pouco mudou sua rotina,
continuava conduzindo seu veículo de maneira imprudente, arriscando sua
integridade física e a de outras pessoas.
Algum tempo depois, quis o destino que o policial e
o rapaz causador de sua odiada transferência se encontrassem novamente. Um novo
acidente, uma única vítima, um único culpado. Capotamento na rodovia após a
perda do controle do veículo, certamente em alta velocidade. Cério reconhece o
homem morto entre as ferragens, agora sem chances do major ajudá-lo. É nesse
momento que o soldado tem uma estranha sensação. Não era satisfação em vê-lo
pagar com a vida seu desrespeito às leis. Isso seria mesquinho demais. Foi mais
uma certeza, uma confirmação de que seu trabalho era importante, algo que
estava acima de seu orgulho. Foi a comprovação de que fazer o certo valia a
pena. Que seu ofício vai além de penalizar infratores, sua obrigação era –
acima de tudo – salvar vidas.
Atenção! Essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança
com nomes, fatos, lugares e pessoas terá sido mera coincidência.
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