sábado, 9 de fevereiro de 2013

A ENTREGA




Lucas não sentia mais suas mãos. O frio intenso as insensibilizara. Puxou a gola da jaqueta, ajeitou o gorro.

Era a terceira semana de intensa nevasca em Curitiba.



Ligou o limpador de para – brisas e a palheta arrastou-se sibilando.

- Tempo maldito! – murmurou resignado, arrancando o veículo após a haste amarela e preta elevar-se e dar passagem ao trânsito. O trem das vinte e duas horas sumia na escuridão da noite.

A janela lateral foi fustigada por um vento ríspido. A noite emergira precocemente, talvez antes mesmo das dezessete horas. Olhou em seu relógio e pôde ver a si mesmo na superfície convexa.

Seu velho citzen já era. Marcava treze horas.

Lucas sacudiu o pulso incrédulo. Seu velho companheiro de estrada o abandonara. Talvez não tivesse resistido àquele clima perverso. Não era um relógio moderno, com baterias substituíveis, mas um relógio maciço, com maquinário complexo e antigo.

A avenida conservava-se deserta.

Apesar da ansiedade que o assolava por causa do atraso, seguiu com cautela, pois já rodara em asfaltos como aquele, revestidos de uma camada quase invisível de gelo.

Olhou por sobre o ombro, emitindo um sorriso desdenhoso.

Acomodado no banco de trás, havia um baú entalhado em madeira, o qual deveria estar sendo entregue naquele exato momento.

Tateou com as mãos no painel e conseguiu ligar o rádio.

Procurou por uma estação, porém só encontrou estática.

Ao desligá-lo ouviu um som rouco, em meio ao leve ulular do vento.

- Que diabos foi isso? – indagou-se, visando de soslaio.

Exatamente no estreito banco de trás da caminhonete de cabine estendida, a diminuta caixa, tal qual uma caixinha de música, mantinha-se inerte, enigmática.

 Franziu o cenho e voltou sua visão para frente. De inopino, subiu na calçada da pista contrária com um baque intenso das rodas sobre o meio-fio, uivou como um louco desvairado e regressou à pista escorregadia, tentando controlar o veículo que dançava.

- Deus meu! – exclamou, passando uma de suas mãos sobre os cabelos, as pernas tremendo.
Lucas sentira que tivera sorte, pois a via permanecia solitária.

O vento intensificou-se, por vezes chacoalhando levemente o veículo.

Alguns segundos se passaram e o som abafado retornou, tênue.

Era como o ronronar de um felino.

- Não é possível! Não caberia um gato nesta caixa! Será um filhote? – sussurrou, pensativo. – Não, não creio! Era importante demais para ser um bicho qualquer! Um pagamento muito alto!

Lucas sorriu ao pensar que muitas pessoas dobravam o valor da entrega, requisitando cautela igualmente redobrada. Entretanto, ele sabia que essa era uma atitude desnecessária, pois o entregador mantinha um padrão normal de cuidado, independentemente do que fosse o material... pelo menos, na empresa em que trabalhava a política era essa.

Olhou novamente por sobre o ombro. Só que, desta vez, algo aconteceu rápido demais, eficiente demais. O veículo subiu na calçada contrária, abalroou um ponto de ônibus coberto, emitindo um som rascante, arrancando sua proteção, retornou à pista e tombou para o lado do passageiro.

Com a pista parcialmente congelada, a caminhonete foi arrastada por, pelo menos, vinte metros de distância da colisão.

Lucas despertou entorpecido e ofegante. Preso ao cinto de segurança, tronco caído sobre o banco lateral.

O vento uivava e transpunha as janelas frontais quebradas. A noite era escura e só um farol permanecia clareando o asfalto à frente e, de forma reduzida, a cabine.

Ouviu um gotejamento tilintar no metal do veículo.

Primeiro, pensou na hipótese de vazamento de combustível, depois, cerrando os olhos no negrume parcial, verificou que era seu próprio sangue que escorria do topo da cabeça à porta lateral retorcida.

Ao fixar a visão, notou que tinha razão. O combustível vazava sim, mas de forma intensa, não gotejando.

- Santa Maria! É o combustível! Tenho de sair daqui! – esganiçou, mobilizando-se de forma inócua ao vislumbrar seu sangue misturando-se à poça de combustível que se avolumava no asfalto, ao redor da cabine.

- Calma! Tenho de ter calma! – disse e mal pode se ouvir. Tentou retirar o cinto, todavia estava preso.

 Perdera a força e o ânimo... seu sangue esvaía-se pelo ferimento na cabeça e o cheiro do combustível deixava-o enjoado.

Finalmente, percebeu o verdadeiro desastre. O baú jazia caído na lateral da porta traseira, com a tampa tão retorcida quanto a porta frontal.

Repentinamente, uma silhueta diminuta esgueirou-se no banco de trás.

Lucas olhou de revés, sentiu uma ardência insuportável em seu pescoço quando tentou visualizar o baú da primeira vez.

Dois pontos luminosos rebrilharam.

- Jesus! O que é isso? – indagou, contorcendo a feição.

Lucas não vira o que se movimentara na escuridão quase total do banco traseiro, mas jurava que a dimensão daquela silhueta não condizia com o tamanho do baú.

Um som célere e sibilante anunciou o início de um incêndio.

Suas forças haviam chegado ao limite. Permaneceu ofegante, inerte, corpo dormente.

A silhueta rastejara para fora como um animal ferido. Ao passar pelo vão da porta lateral e o asfalto, notou que o ser havia crescido ainda mais, um corpo coberto de pêlos e um ronronar agora gutural.

Lucas vira pouco, só partes de suas largas costas, mas algo o fazia crer que aquele ser não estava ferido, mas renascendo, revitalizando-se.

Um arrepio doentio percorreu-lhe o corpo enquanto a criatura afastava-se do veículo, sumindo pela noite adentro, assim como o trem das vinte e duas horas.

Lucas permaneceu ali, preso pelo cinto, aturdido e sem forças, proferindo rezas antigas.
Inesperadamente, uma visão de trevas inundou seus olhos. Seres diabólicos invadindo o plano terrestre, desastres e mortes brutais... um período glacial nefasto havia começado... nevascas e sofrimentos. Talvez aquele baú fosse a solução. Talvez aquele ser fosse o responsável por aquela alteração repentina do clima. Talvez o destinatário da entrega tivesse a solução para o caos que se instalava e soubesse como mandar a criatura de volta ao seu habitat natural.

Ao compreender seu imperdoável erro, que resultara na soltura de algo surreal, inimaginável, o que jamais poderia ter sido permitido, o frio da noite foi aquecido por uma lufada fulminante de chamas e um estrondo mortal.

O cabo do bombeiro, agachado, conferia as diminutas chamas que se desvaneciam lentamente dos entulhos negros que um dia fora um veículo.

- Estranho, tenente, não há ninguém aqui, nem mesmo vestígios de vitimas! – disse ao tenente, que o fitava às suas costas.

O Oficial manteve-se silente.

- O senhor não acreditará nisso! – emendou o cabo.

- O que é?

- Há uma caixa intacta aqui!

- Uma caixa pequena cinza escuro?

- Sim... como o senhor sab... – perguntava, quando, às costas, notou que o tenente sumira em meio aos curiosos próximos.

Em uma viela próxima, calma e escura, o tenente de posse de um celular de serviço, que pegara no interior da viatura, se conectava com um superior de plantão.

- Coronel, estou com a caixa... não, não precisamos de outro entregador no momento, mas do grupo especial de restabelecimento... urgente.


Por Waldick Garrett

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