terça-feira, 4 de setembro de 2012

A arte de errar



O dia 05 de outubro marcou o meu retorno à atividade operacional na Polícia Militar. Depois de passar 08 meses na área administrativa da corporação, voltei a exercer a principal missão de um miliciano, que é garantir a paz social. (Tomo a liberdade de fazer um aparte nesta crônica para registrar minha indignação, porque os termos “milícia” e “miliciano” estão sendo empregados indiscriminadamente para designar grupos armados que subjugam comunidades carentes, vendendo-lhes a segurança que compete ao poder público. Embora alguns policiais façam parte desses grupos de criminosos, não se pode chamar um bando que age à margem de lei de milícia, tampouco seus integrantes de milicianos. Na verdadeira acepção da palavra, milícia significa uma corporação sujeita à organização e disciplina militares. Logo, me orgulho de ser um miliciano).

 

Hei de reconhecer que minha breve passagem pelo serviço policial burocrático rendeu-me experiências úteis, as quais me fazem valorizar ainda mais o trabalho dos companheiros que preferem exercer a função administrativa a exporem-se aos riscos do combate aos criminosos.

 

Minha volta às ruas coincidiu com o pleito eleitoral para prefeito e vereadores. Uma jornada que tinha tudo para ser tranquila, devido às proibições impostas pela lei eleitoral. Mas infelizmente foi um dia pra se esquecer.

 

Trabalhei da aurora ao arrebol. Contudo, toda a adrenalina se reservou para o fim do dia, como acontece nos filmes de suspense. Já se passava das dezesseis horas, a votação chegava ao fim. Entretanto, as escolas ainda estavam lotadas nessa hora. Como é pratica recorrente entre os cidadãos tupiniquins, tudo é deixado para a última hora.

 

- Atenção toda a rede! Troca de tiros na Escola Padre José Sena. Várias pessoas baleadas no local. Dois indivíduos armados evadindo a pé, sentido ao aglomerado Jardim Dileana. A viatura que estiver mais próxima do local dê o prefixo. - Essa foi a mensagem transmitida pelo COPOM (Central de Operações Policiais).

 

Ouvi tal mensagem pelo rádio da viatura e fiquei atônito. Estávamos a duas quadras da escola. Minha guarnição havia acabado de passar em frente ao citado educandário, quando tivemos dificuldade em avançar duzentos metros pela via, em face do grande número de pessoas que se encontravam no local. Por isso presumi a gravidade do fato.

 

- COPOM, aqui é o Tupi-Maré 10545. Estou próximo ao local da ocorrência. Vou verificar a situação. Aguarde mais informações.- Respondi imediatamente.

 

Ao chegar à escola, constatei que três pessoas que estavam na fila para exercer a sua cidadania foram atingidas por disparos de arma de fogo. Pior, todas elas não eram alvos dos criminosos. Obtive informações que a “caça” dos atiradores saiu correndo entre a multidão e escapou ileso. Após providenciar o devido socorro às vítimas, partimos para o rastreamento. Em poucos instantes, o aglomerado estava repleto de viaturas policiais no encalço dos marginais.

 

Colhi informações de um transeunte, as quais davam conta de que os autores dos disparos estavam em determinado endereço. Fomos verificar. Chegando à residência, um dos patrulheiros da minha equipe afirmou que se tratava de “cachanga” (esconderijo de marginais).

 

Não tínhamos certeza se os infratores realmente estavam ali; também não havia mandado judicial para entrar no imóvel. Então, sou questionado pelo motorista da equipe: “E aí chefe. Vamos conferir o barraco ou não?” Lembrei-me, então, da frase de William James: “Não existe ser humano mais miserável do que aquele em que a única coisa habitual é a indecisão”

 

Em prol da sociedade, decidi averiguar a denúncia. Cercamos o imóvel e chamamos diversas vezes. Identificamo-nos como policiais militares. Não fomos atendidos, o que reforçou nossas suspeitas.

 

Fizemos o adestramento tático. Nos fundos da casa, encontramos uma senhora, um rapaz e uma criança. O rapaz era nosso principal suspeito. Um dos integrantes da equipe me diz: "é pila" (cidadão com passagens pela polícia).

 

Informei à senhora sobre a denúncia que pesava contra o jovem e solicitei autorização para proceder a uma busca domiciliar. Ela esbravejou; não assentiu com a nossa atitude; disse que havíamos invadido a casa dela sem nenhuma prova contra as pessoas que ali estavam. Tentei insistentemente persuadir a senhora de que estávamos agindo com o intuito de prender um criminoso que havia atentado contra a vida de pessoas inocentes. De nada adiantou, ela disse que iria nos denunciar na Corregedoria de Polícia, pois éramos truculentos e maus profissionais.

 

A nossa Constituição Federal estabelece as hipóteses em que uma autoridade pode entrar em domicílio alheio, quais sejam: com o consentimento do morador; em caso de flagrante delito; para prestar socorro ou mediante ordem judicial, sendo que esta última só pode ocorrer durante o dia.

 

Percebe-se que, num primeiro momento, a decisão que tomei não encontrava respaldo em nenhum dos critérios citados, pois nós só poderíamos entrar na casa se tivéssemos sido autorizados previamente. Ocorre que nós policiais agimos, na maioria das vezes, seguindo o tirocínio policial; pois se fossemos seguir estritamente a lei, o nosso país já estaria vivenciando uma guerra civil. Esse tirocínio às vezes nos conduz ao erro.

 

Digo isso porque saímos do local e alguns minutos depois outra informação foi transmitida via rádio. O denunciante alegava que tínhamos entrado no barraco errado; que os homicidas estavam escondidos na casa ao lado daquela em que diligenciamos.

 

A essa altura, minha guarnição já estava longe do local. Assim, outra viatura retornou ao endereço, e justamente na casa ao lado daquela em que entramos estavam os dois assassinos. Eles foram presos em flagrante e foram apreendidas duas armas de fogo utilizadas no crime.

 

Errar é inerente ao ser humano. O equívoco do ator denomina-se falha técnica; o do engenheiro, erro de cálculo; o do matemático, lapso de memória; o do motorista, barbeiragem; o do médico, efeito colateral; o do músico, desafino. Por outro lado, o erro do policial nunca tem essa conotação justificadora, mas sim acusatória. Nossa falha é sempre considerada pelos leigos como “abuso de autoridade”, “despreparo profissional”, “arrogância” ou “truculência”.

 

Evidentemente que não sou adepto da teoria de Nicolau Maquiavel, o qual asseverava que os fins sempre justificam os meios. Contudo, os meios que os policiais dispõem, no calor dos acontecimentos, são escassos; quase sempre se resumem à denúncias apócrifas. E para verificar a autenticidade dessas delações, temos que trabalhar no limite da lei.

 

E foi buscando a solução de um crime bárbaro que ultrapassamos esse limite.

 

A linha que separa um ato legítimo de uma arbitrariedade é muito tênue. No caso em questão, não agredimos ninguém, não prendemos ninguém e diante da revolta da citada senhora, abortamos nossa diligência. Mas o simples fato de termos entrado na casa errada poderia ser interpretado pelos magistrados como crime de invasão de domicílio. Mas como saberíamos que os criminosos não estavam lá se não tivéssemos verificado?

 

Entendo que as pessoas deveriam se espelhar mais num velho ditado: “quem não deve, não teme”. Assim, ficaria fácil para a polícia separar “o joio do trigo”. Vivemos numa época de “denuncismo exarcebado” contra policiais. Ninguém ousa denunciar, mesmo que anonimamente, um crime hediondo perpetrado por um bandido. Todavia, o cidadão se enche de argumentos para queixar-se de um simples equívoco praticado por uma autoridade policial.

 

Retornamos ao local onde os criminosos foram presos. A senhora que nos repudiou anteriormente agora veio nos parabenizar pela prisão de seus vizinhos assassinos. Chegou até a nos pedir desculpas pelo tratamento que nos dispensou. Penso até que ela já sabia que os infratores estavam homiziados ali. Não denunciou por medo ou conivência. Não me interessa por qual desses motivos. O que de fato me interessa foi que o meu erro motivou a denúncia que culminou na prisão dos infratores.

 

A vida do policial é assim mesmo: aquele que trabalha mais, também erra mais. Quem erra mais, sofre as conseqüências de uma sociedade hipócrita que ainda não apreendeu a valorizar as pessoas de bem.

 

Pelo menos, os assassinos foram afastados do convívio social. E se sempre for assim, não me importo de errar outras vezes.

 

Mas muitos irão dizer: Vocês não fizeram mais que suas obrigações.

Fim

 

Autor: Nivaldo de Carvalho Júnior, 3º Sgt PM - obra escrita em 05/10/2008

 

Nota: Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou morta, é mera coincidência.

 

É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal.

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