Diante do artigo
denominado Disque MP para matar, disponível no site www.fenapef.org.br (Tribuna
Livre), envio esta contribuição para conhecimento e reflexão dos colegas
policiais. O propósito é colaborar com a compreensão sobre alguns aspectos
relacionados aos confrontos armados.
Sempre que um criminoso
mata um policial, o assunto é tratado como algo natural tendo em vista que seu
trabalho é perigoso, e o policial sabe disso desde o princípio, mas assim mesmo
assume o risco. Com esse raciocínio, o criminoso fez seu papel e cometeu o
crime; o policial cumpriu seu dever, enfrentou o perigo em benefício do
inocente e morreu.
Mas quando um policial,
e neste caso um promotor, mata um criminoso, o tema gera polêmica e opiniões
sem uma base realista de como ocorrem os confrontos armados e como o corpo
humano responde física e psicologicamente diante de situações envolvendo o
risco de morte.
Nenhum policial ou
promotor deseja possuir uma licença para matar. As responsabilidades pessoais,
criminais e espirituais são enormes para aquelas pessoas que, desejando
sobreviver a uma agressão injusta, precisam utilizar uma arma de fogo contra um
criminoso. O desejo de matar é a característica fundamental que separa as pessoas
normais dos sociopatas. No entanto, todos nós temos o direito à legítima defesa.
Nenhum treinamento
prepara uma pessoa para reagir de modo eficaz e com equilíbrio emocional quando
se está diante de uma arma e de uma pessoa hostil. Na luta pela sobrevivência,
a natureza não espera que o homem siga regras quando ele está na iminência de
ser morto.
No caso específico do
promotor, ao que tudo indica e as notícias relatam, a situação ocorreu à noite,
o suspeito se aproximou, anunciou o assalto, exigiu o relógio e fez menção de
sacar uma arma. Isso quer dizer que ele deu todas as dicas de que estava
realmente armado e que a situação era perigosa.
O fato de, supostamente,
não existir uma arma não muda isso. Então, se o promotor esperasse para ver uma
arma, e se ela existisse, as chances de defesa seriam nulas.
Infelizmente, muitas
pessoas acreditam que o risco de vida não existe até que a ameaça ou agressão
seja imediata. Essa idéia perigosa força muitos policiais a esperarem até que
os criminosos saquem e apontem suas armas para eles ou para pessoas inocentes
antes que esses policiais possam neutralizá-los. Pesquisas americanas
demonstram que um criminoso é capaz de sacar uma arma escondida e atirar contra
um policial antes que esse policial consiga simplesmente apertar o gatilho de
sua arma já apontada para o criminoso (Firearms Response Time by Thomas A.
Hontz).
Trocando em miúdos, a
ação é mais rápida que a reação. Desse modo, o promotor agiu com base nas
informações disponíveis naquela fração de segundo. Entendeu o risco que corria
e utilizou seu direito de autodefesa. Uma observação importante é necessária:
as informações da imprensa dão conta de que o suspeito FOI ENCONTRADO
desarmado. Isso não significa que no momento do assalto ele não estivesse armado.
Assim, é plausível a idéia de que após ter sido baleado e incapacitado, a arma
do suspeito possa ter sido furtada por alguém depois do assalto e antes da
chegada da polícia.
As situações de risco
impõem aos envolvidos alterações fisiológicas e mentais que incluem: perda da
visão periférica, perda da visão em profundidade, perda do foco, diminuição da
capacidade auditiva, distorções na percepção do tempo e do espaço, dificuldade
de memória, perda das habilidades motoras finas e complexa, dificuldade de raciocínio
lógico.
Dependendo do indivíduo,
o estresse pode ser tão elevado que se chega ao estágio de Hipervigilância, que
é caracterizado por ações repetitivas (como disparar diversas vezes sem parar e
em poucos segundos), fuga irracional (como correr em meio ao trânsito), luta
descontrolada ou a rendição à morte sem luta. Por esses motivos, não me parece
surpreendente que o promotor tenha disparado dez vezes, pois seus sentidos e
percepções estariam alterados e seria um exagero esperar que ele fosse capaz de
contar os disparos ou observar se o suspeito fora ou não atingido nos dois
primeiros tiros. É por isso que para os leigos, as decisões e ações tomadas no
evento crítico de um assalto parecem excessivas ou irracionais. Mas não são.
As reações do medo e do
estresse são experimentadas tanto pela vítima como pelo criminoso. E essas
reações fisiológicas e mentais inibem a percepção da dor causada por um
ferimento. Se o agressor não sente dor, não há razão para ele desistir de
lutar. Isso significa que um criminoso, mesmo atingindo por dez projéteis,
ainda pode permanecer de pé e atirar contra a vítima (consulte as informações
no site do FBI sobre o episódio ocorrido em 1986 e que ficou conhecido como o
Tiroteio de Miami).
Nesse episódio, um
assaltante de bancos, mesmo atingido 12 vezes por projéteis 9 mm e .38
conseguiu matar dois agentes e ferir gravemente outros cinco antes de morrer em
virtude dos ferimentos. Por isso, os policiais do FBI e do DEA são treinados
para atirar até que o criminoso caia no chão, pois esse é o único meio imediato
que o policial dispõe para saber se o criminoso foi incapacitado. Isso quer
dizer que enquanto o agressor estiver de pé, o policial deve continuar atirando.
Nenhum curso "em
situação de combate" preparar qualquer pessoa para agir eficazmente
durante uma situação de perigo de vida. Esses "treinamentos" não
estão de acordo com as alterações mentais e corporais de uma pessoa durante um
confronto armado real, e o medo e o estresse não estão incluídos. Esses treinamentos
estáticos e tradicionais não permitem a interação com outro ser humano, mas
somente com alvos de papel que não reagem.
Não há nenhuma garantia
de que dois disparos sejam suficientes para incapacitar um criminoso. Cada
indivíduo responderá de modo particular durante um confronto armado. Alguns
irão correr ou cair ao ouvirem o disparo, outros serão incapacitados com um ou
dois tiros, e outros simplesmente resistirão mais tempo não importando a
quantidade dos ferimentos.
A incapacitação imediata
do agressor só ocorrerá se ele for atingido, grosso modo, na cabeça, no coração
ou na medula espinhal. Além disso, nenhuma munição é 100% eficaz 100% das vezes
ao atingir uma pessoa e provocar a incapacitação imediata, e há mais chances da
vítima errar os disparos do que acertar. Nenhuma fábrica de munições dá
garantias de eficácia de seus produtos em 100% das vezes em se tratando da
incapacitação de um ser humano.
As idéias sobre
tiroteios veiculadas nos filmes de ação no cinema e na televisão são irreais,
pois não se assemelham em nada com a verdade de um confronto. A imagem de uma
pessoa voando alguns metros para trás depois de ser atingida por um tiro e seu
peito explodindo em sangue só fazem parte do imaginário de quem nunca viu ou
precisa fantasiar a realidade para satisfazer o público.
Infelizmente, a
sociedade e até mesmo os policiais são influenciados por esse tipo de cenário.
E o pior: o cidadão, a imprensa, o judiciário, a promotoria e muitos policiais
avaliam e julgam a ação de autodefesa de alguém com base na ficção desses
filmes de ação.
Finalmente, atirar duas
vezes e esperar para ver se o criminoso, que está tentando matá-lo, foi ou não
atingido é um erro primário, grave e que leva muitas pessoas à morte, não
obstante ser uma técnica (double tap) ainda ensinada nesses
"treinamentos" sem base realista.
Por: Humberto Wendling é
Agente de Polícia Federal e Instrutor de Armamento e Tiro lotado na Delegacia
de Polícia Federal em Uberlândia/MG.
DIÁRIO DE PM/BM
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