sábado, 6 de julho de 2013

O desconhecimento que mata...a legítima defesa



Diante do artigo denominado Disque MP para matar, disponível no site www.fenapef.org.br (Tribuna Livre), envio esta contribuição para conhecimento e reflexão dos colegas policiais. O propósito é colaborar com a compreensão sobre alguns aspectos relacionados aos confrontos armados.
 
Sempre que um criminoso mata um policial, o assunto é tratado como algo natural tendo em vista que seu trabalho é perigoso, e o policial sabe disso desde o princípio, mas assim mesmo assume o risco. Com esse raciocínio, o criminoso fez seu papel e cometeu o crime; o policial cumpriu seu dever, enfrentou o perigo em benefício do inocente e morreu.

Mas quando um policial, e neste caso um promotor, mata um criminoso, o tema gera polêmica e opiniões sem uma base realista de como ocorrem os confrontos armados e como o corpo humano responde física e psicologicamente diante de situações envolvendo o risco de morte.

Nenhum policial ou promotor deseja possuir uma licença para matar. As responsabilidades pessoais, criminais e espirituais são enormes para aquelas pessoas que, desejando sobreviver a uma agressão injusta, precisam utilizar uma arma de fogo contra um criminoso. O desejo de matar é a característica fundamental que separa as pessoas normais dos sociopatas. No entanto, todos nós temos o direito à legítima defesa.

Nenhum treinamento prepara uma pessoa para reagir de modo eficaz e com equilíbrio emocional quando se está diante de uma arma e de uma pessoa hostil. Na luta pela sobrevivência, a natureza não espera que o homem siga regras quando ele está na iminência de ser morto.

No caso específico do promotor, ao que tudo indica e as notícias relatam, a situação ocorreu à noite, o suspeito se aproximou, anunciou o assalto, exigiu o relógio e fez menção de sacar uma arma. Isso quer dizer que ele deu todas as dicas de que estava realmente armado e que a situação era perigosa.

O fato de, supostamente, não existir uma arma não muda isso. Então, se o promotor esperasse para ver uma arma, e se ela existisse, as chances de defesa seriam nulas.

Infelizmente, muitas pessoas acreditam que o risco de vida não existe até que a ameaça ou agressão seja imediata. Essa idéia perigosa força muitos policiais a esperarem até que os criminosos saquem e apontem suas armas para eles ou para pessoas inocentes antes que esses policiais possam neutralizá-los. Pesquisas americanas demonstram que um criminoso é capaz de sacar uma arma escondida e atirar contra um policial antes que esse policial consiga simplesmente apertar o gatilho de sua arma já apontada para o criminoso (Firearms Response Time by Thomas A. Hontz).

Trocando em miúdos, a ação é mais rápida que a reação. Desse modo, o promotor agiu com base nas informações disponíveis naquela fração de segundo. Entendeu o risco que corria e utilizou seu direito de autodefesa. Uma observação importante é necessária: as informações da imprensa dão conta de que o suspeito FOI ENCONTRADO desarmado. Isso não significa que no momento do assalto ele não estivesse armado. Assim, é plausível a idéia de que após ter sido baleado e incapacitado, a arma do suspeito possa ter sido furtada por alguém depois do assalto e antes da chegada da polícia.

As situações de risco impõem aos envolvidos alterações fisiológicas e mentais que incluem: perda da visão periférica, perda da visão em profundidade, perda do foco, diminuição da capacidade auditiva, distorções na percepção do tempo e do espaço, dificuldade de memória, perda das habilidades motoras finas e complexa, dificuldade de raciocínio lógico.

Dependendo do indivíduo, o estresse pode ser tão elevado que se chega ao estágio de Hipervigilância, que é caracterizado por ações repetitivas (como disparar diversas vezes sem parar e em poucos segundos), fuga irracional (como correr em meio ao trânsito), luta descontrolada ou a rendição à morte sem luta. Por esses motivos, não me parece surpreendente que o promotor tenha disparado dez vezes, pois seus sentidos e percepções estariam alterados e seria um exagero esperar que ele fosse capaz de contar os disparos ou observar se o suspeito fora ou não atingido nos dois primeiros tiros. É por isso que para os leigos, as decisões e ações tomadas no evento crítico de um assalto parecem excessivas ou irracionais. Mas não são.

As reações do medo e do estresse são experimentadas tanto pela vítima como pelo criminoso. E essas reações fisiológicas e mentais inibem a percepção da dor causada por um ferimento. Se o agressor não sente dor, não há razão para ele desistir de lutar. Isso significa que um criminoso, mesmo atingindo por dez projéteis, ainda pode permanecer de pé e atirar contra a vítima (consulte as informações no site do FBI sobre o episódio ocorrido em 1986 e que ficou conhecido como o Tiroteio de Miami).

Nesse episódio, um assaltante de bancos, mesmo atingido 12 vezes por projéteis 9 mm e .38 conseguiu matar dois agentes e ferir gravemente outros cinco antes de morrer em virtude dos ferimentos. Por isso, os policiais do FBI e do DEA são treinados para atirar até que o criminoso caia no chão, pois esse é o único meio imediato que o policial dispõe para saber se o criminoso foi incapacitado. Isso quer dizer que enquanto o agressor estiver de pé, o policial deve continuar atirando.

Nenhum curso "em situação de combate" preparar qualquer pessoa para agir eficazmente durante uma situação de perigo de vida. Esses "treinamentos" não estão de acordo com as alterações mentais e corporais de uma pessoa durante um confronto armado real, e o medo e o estresse não estão incluídos. Esses treinamentos estáticos e tradicionais não permitem a interação com outro ser humano, mas somente com alvos de papel que não reagem.

Não há nenhuma garantia de que dois disparos sejam suficientes para incapacitar um criminoso. Cada indivíduo responderá de modo particular durante um confronto armado. Alguns irão correr ou cair ao ouvirem o disparo, outros serão incapacitados com um ou dois tiros, e outros simplesmente resistirão mais tempo não importando a quantidade dos ferimentos.

A incapacitação imediata do agressor só ocorrerá se ele for atingido, grosso modo, na cabeça, no coração ou na medula espinhal. Além disso, nenhuma munição é 100% eficaz 100% das vezes ao atingir uma pessoa e provocar a incapacitação imediata, e há mais chances da vítima errar os disparos do que acertar. Nenhuma fábrica de munições dá garantias de eficácia de seus produtos em 100% das vezes em se tratando da incapacitação de um ser humano.

As idéias sobre tiroteios veiculadas nos filmes de ação no cinema e na televisão são irreais, pois não se assemelham em nada com a verdade de um confronto. A imagem de uma pessoa voando alguns metros para trás depois de ser atingida por um tiro e seu peito explodindo em sangue só fazem parte do imaginário de quem nunca viu ou precisa fantasiar a realidade para satisfazer o público.

Infelizmente, a sociedade e até mesmo os policiais são influenciados por esse tipo de cenário. E o pior: o cidadão, a imprensa, o judiciário, a promotoria e muitos policiais avaliam e julgam a ação de autodefesa de alguém com base na ficção desses filmes de ação.

Finalmente, atirar duas vezes e esperar para ver se o criminoso, que está tentando matá-lo, foi ou não atingido é um erro primário, grave e que leva muitas pessoas à morte, não obstante ser uma técnica (double tap) ainda ensinada nesses "treinamentos" sem base realista.

Por: Humberto Wendling é Agente de Polícia Federal e Instrutor de Armamento e Tiro lotado na Delegacia de Polícia Federal em Uberlândia/MG.

 

 

DIÁRIO DE PM/BM

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