sábado, 29 de junho de 2013

Antes que amanheça – parte I




Há exatos dezenove anos, dois meses e dois dias, venho dando porrada em vagabundo. Mão de ferro, sem medo, sem receio de ver o sangue imundo sujar a minha farda. Sou xingado, ameaçado de morte, prometido por uma infinidade de vagabundos aos quais dou a mesma resposta - Pega a senha, vai para o fim da fila e espera a tua vez.  Recebo um salário indigno comparado ao sangue, literalmente falando, que derramo pela sociedade, hipócrita em sua maioria. Trabalho sem meios adequados, com equipamentos muitas vezes ultrapassados, vencidos, desgastados pelo uso quase incessante.



Mas, o que me trouxe aqui hoje, doutora, não são esses problemas, supero, melhor, aprendi a superar tudo isso. Lembro-me que no tempo em que estive no Exército, um Sargento sempre nos repetia - Um soldado é superior ao tempo - diariamente, como se fosse uma lavagem cerebral. Até certo ponto era pois não é fácil doutrinar mais de trezentos rapazes, quase homens, em um batalhão.

Fui forjado sob o domínio da violência, desde pequeno. O bairro onde morava e os que costumava freqüentar, não eram Villages cercados por muros e com guardas nas portarias. Eram guetos imundos onde o mais forte sobrevivia. Aos fracos, restava duas opções, ou deixavam-se dominar ou abandonavam o bairro.

Cá estou eu, doutora, 38 anos, parece até piada esse número ser o mesmo do calibre da arma que uso, que carrego em minhas mãos todas as vezes que coloco o pé no lado de fora da viatura, lá nos becos. E por falar em mãos e em becos, um dos motivos que me trouxeram aqui, doutora, é justamente esse, o beco. O segundo motivo, por mais estranho que possa parecer, minhas mãos.

Sei que a senhora deve estar pensando que não estou dizendo coisa com coisa, que talvez não passe de mais um policial estressado com o serviço, como outros tantos que aqui sentam. Mas meu caso é diferente, e só procurei a senhora por um motivo muito simples, policial não tem amigos. Colegas sim, aos montes, mas amigo mesmo, doutora, é como ganhar sozinho na loteria, quase impossível. A senhora se importa se eu fumar? Obrigado. Não precisa dizer, sei que faz mal e tudo, tenho consciência. Mas por outro lado, o que é um cigarro na vida de um homem que não sabe se verá o sol nascer no outro dia?

Como disse, doutora, minhas mãos, há quase vinte anos acariciam o punho frio e duro dessa arma. Já estão tão calejadas que por vezes parecem lixa, dessas que se usa em madeira. Veja a senhora mesma, não parecem maltratadas? Pois é isso, essas mãos cansaram de tanta porrada. Não quero me aposentar, não é isso, se é que a senhora me entende. É que, quando estou sozinho, lá no meu quarto, após uma jornada de trabalho, enquanto espero a adrenalina baixar, fico olhando para elas e imaginando, uma situação diferente, a senhora me entende? É que é complicado para mim falar sobre isso, não sei nem se conseguirei chegar ao final, mas tentarei.

Bom, doutora, sabe, são praticamente vinte anos dando porrada, e como disse, essas mãos aqui ficam imaginando outro tipo de pele para tocar, sabe, como vou dizer. É que, como disse, quando estou sozinho, a senhora sabe que vivo sozinho, me dediquei todo esse tempo ao serviço para limpar essas ruas. Então, me dá um aperto aqui no peito, com se estivesse levando um tiro de 12, até me falta o ar de vez em quando. Eu sei que estou enrolando, mas entenda que nunca falei sobre isso com ninguém, fico até sem jeito sabe? Envergonhado mesmo. É desconcertante, como aquele olhar...

Continua... (*)

 

 

(*)Por: Roberyk

 

Diário de PM/BM

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