sábado, 19 de janeiro de 2013

Adair, o estrategista







Ainda não entendo porque travávamos uma guerra particular contra os traficantes. Era algo obsessivo. Talvez porque não tínhamos sangue de barata, não sei. Eu ficava abismado com a audácia dos vagabundos, vendendo papelotes de crack como se fossem pacotinhos de amendoim torrado. Tamanho atrevimento tornou o que seria profissional em uma questão pessoal. O bom era que eu não estava sozinho.

 
Lembro-me que, em certo 4º/1º turno, eu e o soldado Barros deixamos a viatura em local seguro e deslocamos a pé até um ponto de observação. Por cerca de trinta minutos, monitoramos a boca-de-fumo situada alto da favelinha.


 

Os vagabundos ficavam na entrada de um beco oferecendo o produto para qualquer um que por ali passasse.

 

Estava algo descarado, e não era sem motivo que chamavam o local de "cracolândia". Aquela ousadia me fazia sentir derrotado. Mas a guerra contra as drogas era perene, e a nossa batalha, naquela noite, só estava começando.

 

Como nos outros turnos, era somente eu e o Barros na viatura. Precisávamos de apoio de uma guarnição "ponta de linha". Chamei no rádio a VP do Cabo Adair e Soldado Quintão. Fizemos contato na sede da Unidade. Expliquei para o grupo a situação.

 

Na verdade, Adair sabia até mais do que eu e Barros sobre o tráfico no local. Então, era ora de planejarmos o "pulão". Não havia margens para erro, até porque estávamos com efetivo reduzido. Iríamos incursionar por uma zona quente de criminalidade com apenas quatro policiais.

 

No serviço operacional, nem sempre o mais antigo dita as principais regras da operação, pelo menos não quando eu estava no comando. Dizem que quem detém conhecimento detém autoridade. A respeito daquela favelinha e do modus operandi dos vagabundos do aglomerado, Adair era o "Papa". Eu trouxe a missão, Adair veio com a estratégia.

 

Surpreender infratores em seus locais de atuação é algo muito difícil. Os vagabundos monitoram tudo, conhecem todos que moram e transitam pelo local. Não vou contar detalhes da operação, até porque posso precisar repeti-la algum dia. Mas saiba que a estratégia do Adair foi brilhante.

 

Lembro-me que andamos muito; um dos becos era bem íngreme, sendo necessário ótimo preparo físico para avançar morro acima com a arma em posição de pronta resposta. Quando nos aproximarmos da boca-de-fumo, pudemos ouvir a conversa dos marginais.

 

No momento de dar bote, o "pulão", a adrenalina sempre se eleva. A cabeça pensa muita coisa. Se houver reação, é nós ou eles. Quando se está a frente da operação, ainda a gente pensa em como seria falar com os familiares do companheiro que ele faleceu em serviço. Não deve ser fácil. Então, se a situação exige que alguém vá para o caixão, que seja do outro lado.

 

Em decisão unânime, todos progredimos em disparada para a boca-de-fumo. Dois vagabundos estavam no local. Um deles arremessou a arma que portava em direção dos barracões da favelinha.

 

O outro jogou no chão uma embalagem contendo oito papelotes de crack. Não houve reação, e determinamos que os dois se deitassem na pista de rolamento. Não conseguimos localizar a arma. Estava escuro, e não deu para ver onde ela foi parar.

 

Com certeza tinha mais droga, mas os traficantes não são idiotas de ficarem de posse de grande quantidade de entorpecentes. Então, os dois só foram conduzidos com os oito papelotes arrecadados, quantidade nada expressiva.

 

No final das contas, e horas após a previsão do término do turno, com minha esposa já ligando preocupada para meu celular, fomos liberados do APF que foi lavrado por tráfico de drogas. Pelo menos conseguimos "flagrar" os dois. Sensação de dever cumprido.

 

Em decorrência da operação, fomos recompensados, um ano depois, com uma mera menção elogiosa verbal. O comandante achou que nossa ação não merecia sequer uma menção elogiosa escrita.

 

Olharam mais pela quantidade da droga apreendida do que pela complexidade da incursão. Não sabem eles que, se desse "merda", a solução era pedir prioridade, chamar o pégasus e abrir caminho à bala. Mas estamos na era dos números, das estatísticas... O que são oito papelotes de crack?

 

Não reclamo, porque, como eu disse no início, era uma guerra particular. Não conseguiríamos dormir tranquilos se não fizéssemos nada.

 

Enfim, a operação só foi bem sucedida, só conseguimos o efeito surpresa, porque contávamos com o Adair, o estrategista, que ultimamente vem se destacando, juntamente com sua excelente equipe, no comando do Grupo de Operações, guarnição superpadrão, altamente operacional, que anda sufocando a criminalidade em nossa cidade.

 

Nota: Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou morta, é mera coincidência.

 

É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal.

 

Diário de PM/BM

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