O
dia 05 de outubro marcou o meu retorno à atividade operacional na Polícia
Militar. Depois de passar 08 meses na área administrativa da corporação, voltei
a exercer a principal missão de um miliciano, que é garantir a paz social. (Tomo
a liberdade de fazer um aparte nesta crônica para registrar minha indignação,
porque os termos “milícia” e “miliciano” estão sendo empregados
indiscriminadamente para designar grupos armados que subjugam comunidades
carentes, vendendo-lhes a segurança que compete ao poder público. Embora alguns
policiais façam parte desses grupos de criminosos, não se pode chamar um bando
que age à margem de lei de milícia, tampouco seus integrantes de milicianos. Na
verdadeira acepção da palavra, milícia significa uma corporação sujeita à
organização e disciplina militares. Logo, me orgulho de ser um miliciano).
Hei
de reconhecer que minha breve passagem pelo serviço policial burocrático
rendeu-me experiências úteis, as quais me fazem valorizar ainda mais o trabalho
dos companheiros que preferem exercer a função administrativa a exporem-se aos
riscos do combate aos criminosos.
Minha
volta às ruas coincidiu com o pleito eleitoral para prefeito e vereadores. Uma
jornada que tinha tudo para ser tranquila, devido às proibições impostas pela
lei eleitoral. Mas infelizmente foi um dia pra se esquecer.
Trabalhei
da aurora ao arrebol. Contudo, toda a adrenalina se reservou para o fim do dia,
como acontece nos filmes de suspense. Já se passava das dezesseis horas, a votação
chegava ao fim. Entretanto, as escolas ainda estavam lotadas nessa hora. Como é
pratica recorrente entre os cidadãos tupiniquins, tudo é deixado para a última
hora.
-
Atenção toda a rede! Troca de tiros na Escola Padre José Sena. Várias pessoas
baleadas no local. Dois indivíduos armados evadindo a pé, sentido ao aglomerado
Jardim Dileana. A viatura que estiver mais próxima do local dê o prefixo. - Essa foi a mensagem transmitida pelo COPOM
(Central de Operações Policiais).
Ouvi
tal mensagem pelo rádio da viatura e fiquei atônito. Estávamos a duas quadras
da escola. Minha guarnição havia acabado de passar em frente ao citado
educandário, quando tivemos dificuldade em avançar duzentos metros pela via, em
face do grande número de pessoas que se encontravam no local. Por isso presumi
a gravidade do fato.
-
COPOM, aqui é o Tupi-Maré 10545. Estou próximo ao local da ocorrência. Vou
verificar a situação. Aguarde mais informações. - Respondi imediatamente.
Ao
chegar à escola, constatei que três pessoas que estavam na fila para exercer a
sua cidadania foram atingidas por disparos de arma de fogo. Pior, todas elas
não eram alvos dos criminosos. Obtive informações que a “caça” dos atiradores
saiu correndo entre a multidão e escapou ileso. Após providenciar o devido
socorro às vítimas, partimos para o rastreamento. Em poucos instantes, o
aglomerado estava repleto de viaturas policiais no encalço dos marginais.
Colhi
informações de um transeunte, as quais davam conta de que os autores dos
disparos estavam em determinado endereço. Fomos verificar. Chegando à
residência, um dos patrulheiros da minha equipe afirmou que se tratava de
“cachanga” (esconderijo de marginais).
Não
tínhamos certeza se os infratores realmente estavam ali; também não havia
mandado judicial para entrar no imóvel. Então, sou questionado pelo motorista
da equipe: “E aí chefe. Vamos conferir o barraco ou não?” Lembrei-me,
então, da frase de William James: “Não
existe ser humano mais miserável do que aquele em que a única coisa habitual é
a indecisão”
Em
prol da sociedade, decidi averiguar a denúncia. Cercamos o imóvel e chamamos diversas
vezes. Identificamo-nos como policiais militares. Não fomos atendidos, o que
reforçou nossas suspeitas.
Fizemos
o adentramento tático. Nos fundos da casa, encontramos uma senhora, um rapaz e
uma criança. O rapaz era nosso principal suspeito. Um dos integrantes da equipe
me diz: "é pila" (cidadão com passagens pela
polícia).
Informei
à senhora sobre a denúncia que pesava contra o jovem e solicitei autorização
para proceder a uma busca domiciliar. Ela esbravejou; não assentiu com a nossa
atitude; disse que havíamos invadido a casa dela sem nenhuma prova contra as
pessoas que ali estavam. Tentei insistentemente persuadir a senhora de que
estávamos agindo com o intuito de prender um criminoso que havia atentado
contra a vida de pessoas inocentes. De nada adiantou, ela disse que iria nos
denunciar na Corregedoria de Polícia, pois éramos truculentos e maus
profissionais.
A
nossa Constituição Federal estabelece as hipóteses em que uma autoridade pode
entrar em domicílio alheio, quais sejam: com o consentimento do morador; em
caso de flagrante delito; para prestar socorro ou mediante ordem judicial,
sendo que esta última só pode ocorrer durante o dia.
Percebe-se
que, num primeiro momento, a decisão que tomei não encontrava respaldo em
nenhum dos critérios citados, pois nós só poderíamos entrar na casa se
tivéssemos sido autorizados previamente. Ocorre que nós policiais agimos, na
maioria das vezes, seguindo o tirocínio policial; pois se fossemos seguir
estritamente a lei, o nosso país já estaria vivenciando uma guerra civil. Esse
tirocínio às vezes nos conduz ao erro.
Digo
isso porque saímos do local e alguns minutos depois outra informação foi
transmitida via rádio. O denunciante alegava que tínhamos entrado no barraco
errado; que os homicidas estavam escondidos na casa ao lado daquela em que
diligenciamos.
A
essa altura, minha guarnição já estava longe do local. Assim, outra viatura
retornou ao endereço, e justamente na casa ao lado daquela em que entramos
estavam os dois assassinos. Eles foram presos em flagrante e foram apreendidas
duas armas de fogo utilizadas no crime.
Errar
é inerente ao ser humano. O equívoco do ator denomina-se falha técnica; o do
engenheiro, erro de cálculo; o do matemático, lapso de memória; o do motorista,
barbeiragem; o do médico, efeito colateral; o do músico, desafino. Por outro
lado, o erro do policial nunca tem essa conotação justificadora, mas sim
acusatória. Nossa falha é sempre considerada pelos leigos como “abuso de
autoridade”, “despreparo profissional”, “arrogância” ou “truculência”.
Evidentemente
que não sou adepto da teoria de Nicolau Maquiavel, o qual asseverava que os
fins sempre justificam os meios. Contudo, os meios que os policiais dispõem, no
calor dos acontecimentos, são escassos; quase sempre se resumem à denúncias
apócrifas. E para verificar a autenticidade dessas delações, temos que trabalhar
no limite da lei.
E
foi buscando a solução de um crime bárbaro que ultrapassamos esse limite.
A
linha que separa um ato legítimo de uma arbitrariedade é muito tênue. No caso
em questão, não agredimos ninguém, não prendemos ninguém e diante da revolta da
citada senhora, abortamos nossa diligência. Mas o simples fato de termos
entrado na casa errada poderia ser interpretado pelos magistrados como crime de
invasão de domicílio. Mas como saberíamos que os criminosos não estavam lá se
não tivéssemos verificado?
Entendo
que as pessoas deveriam se espelhar mais num velho ditado: “quem não deve, não
teme”. Assim, ficaria fácil para a polícia separar “o joio do trigo”. Vivemos
numa época de “denuncismo exarcebado” contra
policiais. Ninguém ousa denunciar, mesmo que anonimamente, um crime hediondo
perpetrado por um bandido. Todavia, o cidadão se enche de argumentos para
queixar-se de um simples equívoco praticado por uma autoridade policial.
Retornamos
ao local onde os criminosos foram presos. A senhora que nos repudiou
anteriormente agora veio nos parabenizar pela prisão de seus vizinhos
assassinos. Chegou até a nos pedir desculpas pelo tratamento que nos dispensou.
Penso até que ela já sabia que os infratores estavam homiziados ali. Não
denunciou por medo ou conivência. Não me interessa por qual desses motivos. O
que de fato me interessa foi que o meu erro motivou a denúncia que culminou na
prisão dos infratores.
A
vida do policial é assim mesmo: aquele que trabalha mais, também erra mais.
Quem erra mais, sofre as consequências de uma sociedade hipócrita que ainda não
apreendeu a valorizar as pessoas de bem.
Pelo
menos, os assassinos foram afastados do convívio social. E se sempre for assim,
não me importo de errar outras vezes.
Mas muitos irão dizer: Vocês não
fizeram mais que suas obrigações.
Fim
Autor: Nivaldo de Carvalho Júnior, 3º Sgt PM - obra
escrita em 05/10/2008
Nota: Esta é uma obra de ficção. Nomes,
personagens, fatos e lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo
fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou
morta, é mera coincidência.
É
livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da
Constituição Federal.
Diário PM/BM
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