sábado, 1 de junho de 2013

A Morte é estúpida




Como sempre faço ao acordar, leio os jornais online para ver as notícias de última hora, que quase sempre são as mesmas. Em sua maioria resumem-se em policiais, políticas e esportivas. Lógico, a massa precisa ser ludibriada para não pensar que sua vida é uma merda e que os maiores bandidos desse país ocupam lugares estratégicos no comando da nação.

 

Vez que outra aparece o lançamento de um Best Sellers de algum gringo ou um apadrinhado das grandes empresas televisivas, que são detentoras também da mídia escrita. Mas isso é outra história.

 

O que realmente me choca, não pela brutalidade em si, mas pela quantidade e a maneira como ocorre, é a morte. A Senhora Dona Persona abdicou da sua famosa foice e a capinha preta com capuz, modernizou-se, evoluiu junto com a humanidade. Já não usa mais a boa e velha foice, muito menos as bestas do apocalipse como meio de transporte.

 

Hoje, ela dispõe de um aparato infinitamente diversificado, desde fuzis, pistolas, granadas, facas, canivetes, cacos de vidro, volantes (estes são os mais utilizados, diariamente – nos feriados eles multiplicam-se), vez que outra usa hélices e turbinas de aviões (quando ela quer dar seu showzinho particular).

 

Assim começo meu dia, pensando em quantas vidas são ceifadas diariamente, de maneira incrivelmente desnecessária. Dizem que tenho uma profissão de risco, policial militar. Por vezes até sinto a Dona Persona sentada no banco do carona da viatura, olhando para mim e rindo com o canto da boca, como quem diz: “Tua hora vai chegar. Estou de olho em você”.

 

Passo dias e noites no fio da navalha, enfrentando o trânsito, a correria, os criminosos, sempre pronto para um confronto armado, sem saber de onde virá a bala ou quando ela virá. E Dona Persona ali, com aquele sorriso cínico, o mesmo que costumo tirar da boca dos vagabundos à base de porrada.

 

Não tento desvencilhar-me dela. Nas várias ocorrências que atendo, percebo sua cara de decepção quando a vítima não morre, e também vejo seu sorriso orgástico quando o corpo está estendido no chão, quando é dilacerado o orgasmo é múltiplo. Mas enfim, faz parte do jogo da vida (e da Morte).

 

Após tanta labuta, volto para casa, cansado, tenso, com a adrenalina em alta na corrente sanguínea. É sempre preciso esperar uma hora para que ela baixe.

 

Minha casa é modesta, apenas três peças. A cozinha, e sala, é a antiga garagem, que nunca viu um carro. Meu quarto era a antiga cozinha, amplo, com banheiro, quase uma suíte. Para mim está de bom tamanho. O piso é todo de cerâmica, desde o portão de entrada até a pequena área nos fundos.

 

Posso afirmar que é aconchegante. Ontem trabalhei a noite toda, uma noite difícil, chuvosa. Quando chove aqui na cidade, os vagabundos se recolhem, mas nem por isso o serviço é calmo. A Dona Persona se apossa dos volantes e começa o rodízio de acidentes. A correria é intensa, ainda mais com nossas precárias viaturas, com pneus carecas, limpador de para-brisa que não limpa, vidros embaçados, freios gastos. Mas conseguimos, mesmo assim, conduzir as carroças.

 

Cheguei a minha casa com o dia claro, nublado, caindo uma garoa fina e constante. Como sempre faço, estaciono o carro, fecho o portão, percorro exatos dez metros entre o carro e a porta de casa, giro a chave, abro a porta, entro. Mas como estava cansado e já todo ensopado, apurei o passo, queria tirar logo aquela farda já suja de barro e sangue.

 

Entrei de supetão, meu pé direito tocou o piso, escorreguei e caí. Minha cabeça bateu exatamente na borda do minúsculo degrau na porta. Meu corpo ficou ali na porta, encharcado, o sangue que escorria da minha cabeça pintava as lajotas de cerâmica.

 

E cá estou eu e a Dona Persona. Ela sorrindo com seu orgasmo e eu a chamando de estúpida, a minha morte estúpida

 

 

 

Por: Roberyk

 

Diário de PM/BM


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