Em 02 de setembro de 2010, um jornal eletrônico publicou o artigo
denominado “Polícias brasileiras usam diariamente munição proibida em guerras”.
O subtítulo do mesmo artigo dizia que “Projéteis do tipo ‘ponta oca’ foram
banidos em conflitos internacionais por serem considerados altamente letais e
desumanos. ”
Para fins didáticos, este texto contém os trechos mais importantes do
artigo mencionado seguidos por alguns comentários numerados. Então, vamos lá!
“Policiais civis e militares brasileiros e agentes federais usam
indiscriminadamente munições de ponta oca, cujo uso é proibido entre nações,
pela Convenção de Haia de 1899. A norma regulamenta armas e munições que podem
ser usadas por militares em conflitos armados, levando em conta o viés
humanitário.” (Último Segundo, 2010)
Comentário nº 1: As polícias brasileiras não usam indiscriminadamente munições de
ponta oca, pois se a legislação não proíbe tal munição, seu uso não pode ser
considerado indiscriminado. Além disso, toda munição produzida pela única
empresa existente no Brasil e vendida para as forças policiais é controlada
pelo Exército Brasileiro. E cada cartucho possui um código serial marcado no
estojo que viabiliza a localização da unidade policial que adquiriu aquele cartucho.
Comentário nº 2: A Convenção de Haia de 1899 também não proibiu o uso de munição
expansiva, já que sua Declaração nº 3, de 29 de julho de 1899, que trata do uso
de projéteis expansivos, informa que os países signatários concordam em se
abster do uso de projéteis que expandem ou achatam facilmente no corpo
humano, tais como os projéteis com camisas que não cobrem inteiramente seus
núcleos ou cravados com incisões. A declaração informa, ainda, que o acordo só
é válido para os países signatários em casos de guerra, mas pode cessar
caso um deles se junte a outro país que não participa do acordo. Portanto, a
abstenção ou recusa voluntária em usar munições expansivas pode ser
interrompida mesmo nos conflitos bélicos.
“As munições de ponta oca, ‘hollow point’, são ‘projéteis de expansão’.
O artefato expande o tecido atingido, fazendo um buraco ao atingir o corpo
humano, causando maior impacto e neutralizando o alvo com maior eficiência.
Essa munição diminui muito a chance de ricochetear ou atravessar um alvo e atingir
outra pessoa. Junto com outros projéteis de expansão ainda mais letais, a ponta
oca usada no Brasil integra um grupo de munições popularmente conhecidas como
‘dum dum’.( Último Segundo, 2010).
Comentário nº 3: A expansão do tecido humano quando atingido por um projétil não é uma
característica peculiar provocada pela munição ponta oca. Na verdade, qualquer
objeto (faca, flecha, lança, dardo, agulha, prego, etc.) que pretenda perfurar
um alvo precisa expandir o tecido humano até seu limite de ruptura. Este
princípio se aplica tanto aos projéteis expansivos quanto aos ogivais. É óbvio,
também, que todo objeto que pretenda perfurar o corpo humano deva “fazer um
buraco”, caso contrário, não haverá uma perfuração. E perfurar o corpo humano
sempre foi o objetivo principal de todas as armas ofensivas desenvolvidas pelo
homem desde tempos remotos. Assim, o nome “expansivo” não se deve ao fato deste
tipo de projétil expandir o tecido humano, pois qualquer objeto possui esta
capacidade, mas porque é o próprio projétil que se expande ao entrar em contato
com as partes líquidas do corpo. Além do mais qualquer projétil irá deformar no
impacto com uma superfície suficientemente dura, como um osso, por exemplo.
Comentário nº 4: A neutralização ou incapacitação imediata do agressor não ocorre em
função do impacto, mas em virtude do projétil ponta oca, já expandido, produzir
um canal de ferida permanente mais largo que o produzido pelo projétil ogival.
Assim, quanto mais largo e profundo for o ferimento, maior a chance de
incapacitação em virtude da intensa e rápida hemorragia capaz de induzir à
inconsciência do agressor. O objetivo não é matar, mas incapacitar
imediatamente aquele indivíduo que representa uma ameaça real e imediata à
vida do policial. Se a munição empregada pela força policial não for capaz de
produzir este resultado, então o policial será exposto ao perigo de morte,
adicionalmente à sua já perigosa função, simplesmente porque a munição
empregada não cumpre com eficácia seu objetivo. A questão aqui é tão somente o
diâmetro do ferimento. Esse diâmetro também pode ser ampliado se for aumentado
o calibre do projétil. Por exemplo, as polícias brasileiras poderiam substituir
as munições 9 mm e .40 expansivas pela munição .45 não expansiva. É como diz um
amigo policial civil e atirador prático: “Enquanto se discute se a munição
usada pelas polícias expande ou não, é certo que o .45, naturalmente mais
larga, não encolhe!” Contudo, como a média de aproveitamento dos disparos
(acertos no alvo) é de 17%, segundo estatíticas americanas, o policial precisa
levar consigo o maior número de cartuchos possíveis para aumentar a chance de
acerto antes que ele fique sem munição, o que é inviável para armas no calibre
.45. Por isto as forças armadas de todo o mundo e a Polícia Federal brasileira
ainda utilizam o calibre 9 mm.
Comentário nº 5: Todo projétil de arma de fogo é letal por natureza, e até mesmo as
tecnologias menos letais, como os projéteis de borracha, podem matar sob certas
circunstâncias. Por exemplo, é bem provável que um projétil de qualquer
calibre, que atinja o cérebro provoque a morte. Mas isso não quer dizer que o
policial deva utilizar qualquer calibre ou mesmo treinar para acertar a cabeça
do agressor, pois é difícil que ele consiga mirar cuidadosamente na cabeça
durante o estresse de um tiroteio. É por isso que o treinamento conduz o
policial a disparar contra o centro de massa, ou seja, a parte central do corpo
humano, independentemente do calibre ou do tipo de projétil.
Comentário nº 6: Dum Dum é uma cidade indiana que durante o século 19 abrigou a Real
Artilharia Britânica quando a Índia ainda era uma colônia inglesa. Nessa base
militar, o oficial Neville Sneyd Bertie-Clay iniciou os trabalhos para o
desenvolvimento das primeiras munições expansivas do tipo Soft Point (quando a
camisa cobre parte do projétil, contudo deixando a ponta de chumbo exposta para
que deforme e adquira a forma de um cogumelo durante a penetração no corpo
humano). O desenvolvimento desse tipo de munição ocorreu porque os cartuchos
ingleses da época eram incapazes de incapacitar imediatamente os revoltosos
indianos, principalmente a curtas distâncias. Portanto, Dum Dum não é um tipo
de munição, mas o local onde um tipo de projétil expansivo foi desenvolvido.
“De acordo com o diretor do IML (Instituto Médico Legal) do Estado do
Rio de Janeiro, Xxxxx Xxxxxxx, ‘a característica de um ferimento de bala oca
[internamente] é semelhante à forma de um cogumelo, pois a munição retém todo o
poder de energia do projétil dentro do corpo e dobra o seu poder de destruição,
sendo mais letal que a munição em forma de ogiva, totalmente fechada’.” (Último
Segundo, 2010).
Comentário nº 7: O estudo do FBI “Handgun Wounding Factors and Effectiveness” informa
que frequentemente os médicos legistas não podem distinguir um ferimento
causado por um projétil expansivo daquele provocado por um de ponta oca, pois
não há diferença física nas lesões. Um ferimento de “bala oca” não é semelhante
à forma de um cogumelo, porque é o projétil que assume essa configuração, não a
lesão.
Comentário nº 8: Nenhuma munição, seja expansiva ou ogival, retém energia cinética, mas
todas transferem esta energia para o alvo. Contudo, não é a transferência de
energia cinética que incapacita o agressor, mas sim a distância penetrada no
alvo e a quantidade de tecido destruído pelo projétil. Portanto, um projétil
não possui energia suficiente para nocautear uma pessoa porque sua massa é
milhares de vezes menor que a massa de um ser humano. Por exemplo, a massa de
um projétil .40 (11,66 g) é 6.432 vezes menor que a massa de um homem de 75 kg.
A quantidade de energia depositada no corpo humano por um projétil é
equivalente a ser atingido por uma bola de beisebol, de acordo com o cirurgião
americano Douglas Lindsey, em seu estudo denominado “The Idolatry of Velocity,
or Lies, Damn Lies, and Ballistics” (1980, p. 1068-1069). Assim, um projétil
não pode simplesmente nocautear um homem. Se houvesse energia suficiente para
fazer isto, então uma energia equivalente seria aplicada contra o atirador, e
ele também seria “nocauteado”. Essa informação é corroborada por uma das
maiores autoridades sobre ferimentos balísticos, o Coronel do Corpo Médico do
Exército Americano e médico especialista em balística terminal Martin L.
Fackler.
“Não há restrição legal para o uso da munição por forças policiais – a
Convenção de Haia (1899) se aplica somente aos exércitos. Mas a sua aplicação é
cercada de polêmica entre os defensores e críticos dos Direitos Humanos.”
(Último Segundo, 2010).
Comentário nº 9: A Convenção de Haia se aplica somente às forças armadas dos países
signatários e o que se proíbe, dentre outras coisas, é o emprego de armas,
projéteis ou materiais calculados para causar sofrimento desnecessário. Então é
importante frisar que o objetivo da munição expansiva é somente incapacitar
imediatamente o agressor, mas jamais provocar sofrimento desnecessário.
“No exterior, a munição ponta oca é usada largamente pelas polícias dos
Estados Unidos. Já na Inglaterra, foi utilizada, em 2005, para matar o
brasileiro Jean Charles de Menezes, confundido com um terrorista dentro de uma
estação de metrô em Londres.” (Último Segundo, 2010).
Comentário nº 10: Na Inglaterra a munição expansiva só é proibida para uso civil,
conforme indica a Seção 5 (1A) do Ato de 1968, o que implica afirmar que não há
proibição legal para o uso dessa munição por parte da polícia inglesa. Além
disso, os chefes de polícia podem escolher qualquer tipo de munição que seja
apropriado às necessidades operacionais dos policiais. O fato de o senhor Jean
Charles ter sido morto não tem nenhuma relação com a munição utilizada pela
polícia, mas com o ponto de impacto dos projéteis (sete disparos na cabeça e um
no ombro). Certamente, qualquer pessoa morreria se atingida sete vezes na
cabeça por qualquer tipo de projétil de qualquer calibre.
“O uso no Brasil dessa munição não é proibida pela Lei Federal n°
10.826/2003 e pelo decreto presidencial n° 5.123/2004, responsáveis por
regulamentar as armas e munições no País. Ainda segundo a legislação, o
Exército é o responsável por autorizar as munições que são usadas na federação,
e cada órgão policial solicita os artefatos de acordo com sua necessidade.
Segundo o Coronel Achiles Filho, assessor da Diretoria de Fiscalização de
Produtos Controlados da corporação, ‘não existe proibição para o uso da munição
ponta oca, somente restrição a calibres maiores para as polícias’.” (Último
Segundo, 2010).
Comentário nº 11: A legislação está correta, afinal quem sabe das suas necessidades e diz
como a polícia tem que operar é a própria polícia.
“No entanto o texto original da Conferência afirma que ‘estão banidas
[em guerras] as munições que se expandem no corpo humano, como as que possuem o
seu interior oco’.” (Último Segundo, 2010).
Comentário nº 12: o texto original da Convenção de Haia (1899) não bane as
munições que se expandem no corpo humano. A Declaração nº 3 afirma que os
países contratantes concordam em se abter do uso de projéteis que
expandem ou achatam facilmente no corpo humano. O texto original informa o seguinte: “The Contracting Parties agree to
abstain from the use of bullets which expand or flatten easily in the human
body, such as bullets with a hard envelope which does not entirely cover the
core, or is pierced with incisions.”
Comentário nº 13: Em 1907 ocorreu a segunda conferência de Haia, cujo objetivo era
modificar algumas partes e adicionar outras ao texto da primeira convenção de
1899, especialmente em relação à guerra naval. O texto da Convenção de Haia de
1907 informa que o direito dos beligerantes para adotar meios para ferir o
inimigo não é ilimitado; que é especialmente proibido empregar veneno ou armas
envenenadas; matar ou ferir à traição indivíduos pertencentes à nação ou
exército hostil; matar ou ferir um inimigo que, tendo deposto suas armas ou que
não tenha condições de se defender, tenha se rendido incondicionalmente;
empregar armas, projéteis ou materiais calculados para causar sofrimento
desnecessário.
Comentário nº 14: Mesmo com o advento da Convenção de Genebra (1864) e das Convenções de
Haia (1899, 1907 e 1954) que tentaram diminuir a gravidade dos conflitos
armados no mundo, a própria ONU relata o crescimento no número de mortos nesses
conflitos, conforme o quadro 5.1. Por quê? Porque as convenções tentam evitar o
sofrimento desnecessário supostamente provocado pelos projéteis expansivos, mas
não são capazes de impedir o ferimento ou a morte dos combatentes com o uso das
munições ogivais.
Human Development Report 2005 – Capítulo 5 – Violent Conflicts (http://hdr.undp.org/en/media/hdr05_po_chapter_51.pdf)
Comentário nº 15: Embora nenhuma munição seja capaz de incapacitar imediatamente o
agressor sempre, certamente alguns tipos funcionam melhor que outros, e
qualquer margem a favor do policial é desejável na autodefesa. É lógico que a
falha em incapacitar pode variar de acordo com a gravidade do ferimento,
lembrando que esta severidade é uma função do ponto de impacto, da profundidade
da penetração e da quantidade de tecido destruído. Por isso, é seguro dizer que
se um alvo for 100% destruído, então a incapacitação é certa. Se 50% do alvo
for destruído, a incapacitação é menos provável. A incapacitação é ainda menos
certa se 25% do alvo for destruído. Contudo, e voltando à realidade, a
destruição provocada por um projétil de arma de fogo é bem menor que 1% do
alvo, mas a comparação é inevitável. Assim, um projétil expansivo que destrua
0,07% do alvo (52 g de um homem com 75 kg) incapacitará com mais frequência do
que aquele ogival que destrua 0,04% (30 g). De qualquer modo, esta diferença
pode ser muito pequena, mas ela representa uma margem de vantagem que deve ser
sempre favorável ao policial. Caso contrário, esta margem penderá para os
criminosos que tentam matar policiais todos os dias.
É triste, mas a verdade é que os que estão contra os policiais não são
apenas aqueles que empunham armas e, contrariando a própria Convenção de Haia,
nos matam utilizando meios limitados apenas pela imaginação; que nos eliminam à
traição ou mesmo quando já nos rendemos ou não temos condições de defesa; que
usam as mesmas munições expansivas que alguns acham que devem ser banidas; que
nos torturam e queimam em fornos improvisados no alto dos morros; que deixam
filhos órfãos e esposas viúvas!
Muitos acreditam que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não
vale para os policiais que defendem diariamente a propriedade, a justiça, a
liberdade e a paz de pessoas desconhecidas. Contudo, uma coisa é certa:
criminosos jamais tornarão o mundo melhor! Felizmente, todos os policiais do
mundo sabem disso! E quem não sabe ou não tem nada bom para dizer deveria, pelo
menos, ficar em silêncio!
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.
Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em
espírito de fraternidade. Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades
proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça,
de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de
origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra
situação. Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal. Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes.”
Autor: Humberto Wendling - Agente
de Polícia Federal e Professor de Armamento e Tiro
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