quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Síndrome do Rambo: a fadiga do combate





O texto a seguir foi publicado originalmente na comunidade da PMRN. Sabe quando você está com vontade de desabafar e vai descarregando tudo no teclado? Pois bem, esse foi um desses momentos de inspiração.

 

O responsável por essas linhas é ex-policial militar do Rio Grande do Norte (oito anos na Gloriosa) e atualmente trabalha na polícia civil como escrivão. Assim, ninguém pode dizer que ele não conhece o serviço policial e muito menos duvidar de seu relato (por mais escabrosa que a história seja). Confira.

 

Este ano completa um total de cinco anos que as tropas brasileiras estão no Haiti, cumprindo uma missão que DEVERIA ser cumprida AQUI.

Durante meus dias na gloriosa, atendi muitas ocorrências nas quais o personagem central era um veterano do Haiti. Geralmente eram garotos entre 20 e 22 anos, mal saídos dos cueiros, mas já com a carreira destroçada e a vida comprometida. Todos apresentavam elevado grau de adrenalina, esquizofrenia, além de um exagerado senso de auto-defesa. Quando passava um fusca “véi”, peidando, os garotos se jogavam no chão e saíam no rastejo, procurando abrigo. Por diversas vezes tivemos que conduzi-los ao HGUN, para internação.

Tudo isso são ecos da guerra, de uma escala exagerada, que força os limites do ser humano e do profissional ao extremo, deixando a qualidade do serviço à beira do caos. O soldado JOHN RAMBO, famoso personagem do cinema encarnado por SYLVESTER STALLONE, é o maior exemplo, embora fictício, da fadiga de combate à qual os médicos deram um nome bastante alusivo: A SÍNDROME DO RAMBO.

A síndrome do rambo consiste num acúmulo de estresse além do limite suportável pelo profissional da área de segurança, incluindo-se aí as forças armadas. Os sintomas são justamente esses que os ex-combatentes do Haiti demonstraram ao voltar de lá. Quase todos apresentam sérios problemas psicológicos e alguns evoluíram o seu quadro de uma forma tão fora de controle que passaram a ser atendidos pela psiquiatria e não mais pela psicologia.

Conversando com alguns deles, depois de mais calmos, ouvi relatos horríveis sobre o dia-a-dia entre o MEDO DE TER QUE MATAR e a CERTEZA DA MORTE, nas favelas haitianas.

Segundo eles, os corpos das pessoas mortas nos combates ficam expostos por semanas a fio, sem que ninguém os recolhessem, pois justamente as pessoas que tentam dar cabo do trabalho funesto são os alvos preferidos dos franco-atiradores, além de enfermeiros e paramédicos.

Um deles me falou que demorou mais de três meses para se acostumar em casa, sem o colete e o capacete.

Às vezes vejo um deles, que mora no Pitimbu, assumindo posição defensiva, atrás do muro de sua casa, como se estivesse em seu BUNKER ou sua trincheira, sempre que um carro se aproxima. Depois que o carro passa, ele direciona sua atenção em direção ao alto de uma duna próxima, como se nela houvesse alguém à espreita, pronto para atacá-lo. O triste nessa história, é que isso não é um caso isolado. E não acontece apenas nas forças armadas.

Submetidos a uma escala desumana e cruel, os policiais brasileiros, em especial os policiais militares estão desenvolvendo quadros patológicos iguais aos apresentados pelos veteranos de guerra. E o que é pior: o cidadão comum das grandes cidades também sofre do mesmo mal.

No Haiti, segundo um deles relatou, a escala era descontrolada, no início seguia o padrão 24 x 72h, o que garantia o repouso físico e mental. Com o agravamento da situação, para poder conter a escalada da violência no país, a força brasileira, à qual coube o papel de POLÍCIA local teve de utilizar um remédio pior do que a doença: a famigerada redução da escala de trabalho, passando a ser de 24 x 48h!

Apenas alguns dias depois de implantada, os frutos negativos começaram a aparecer: combatentes cansados, desanimados, desestimulados, com o moral baixo, começaram a surgir em todas as unidades estacionadas no Haiti. Muitos começaram a adoecer e não conseguiam se recuperar plenamente, pois a escala não permitia, afinal, aquilo é uma guerra!

Segundo um SGT que conheci no aeroporto, outro dia, depois de um tempo praticamente não havia mais escalas: a tropa era enviada ao campo através do velho sistema de sortidas (sorties), missões que só tinham hora inicial, e como hora final, apenas a incerteza. De acordo com os relatos do graduado, após cinco sortidas bem sucedidas os militares participantes eram agraciados com alguns dias de repouso, quase sempre interrompidos por fogo inimigo, de surpresa, ou então em missões urgentes de substituição.

O objetivo do presente texto é o de alertar aos profissionais de segurança pública quanto à nocividade de escalas de trabalho inadequadas. A SÍNDROME DO RAMBO está presente em nossos quartéis, em nossas delegacias, em nossos presídios, em nossos institutos médicos legais, em nossos corpos de bombeiros.

Esta semana visitei minha velha 2ª CIA/9º BPM de guerra.

Fiquei muito triste ao saber de um episódio envolvendo um dos melhores motoristas de lá, um caso notório da síndrome do rambo.

O dito soldado, ao assumir o serviço, foi informado de que teria de trabalhar num viatura composta de apenas dois policiais. Como todos sabem que tal medida não é adequada ao serviço, por oferecer grande risco aos policiais, o soldado questionou o tenente de sua CIA, e, segundo o que me contaram, o oficial praticamente OBRIGOU o praça a assumir o serviço, da forma como havia sido determinado pelo comando do batalhão.

Reza a má nova que o soldado entrou em crise nervosa e sacou sua pistola, deflagrou alguns tiros para o alto e apontou a mesma para o tenente, tendo este que agir em defesa própria e de seus comandados presentes na ocasião. Após dominado, o soldado foi encaminhado ao serviço de assistência psicológica do CENTRO CLÍNICO, e está afastado de qualquer tipo de serviço, por enquanto.

Então, aos que exercem cargos administrativos, se lhes for dado o poder de decisão sobre as escalas de serviço, fica o meu pedido em nome de todos os colegas:

Pensem naqueles que são responsáveis pela tranquilidade de seu sono, e ofertem aos mesmos a oportunidade de poderem cochilar um pouco, sem ter de acordar a cada quarto de hora, tendo por canção de ninar a voz do radio-operador chamando o prefixo de sua equipe.

Pensem nisso. Por tabela, a sociedade agradece. Melhor do que deixar o RAMBO voltar pra casa, é fazer com que ele não precise sair de lá.

 

Por: FLÁVIO HENRIQUE 

2 comentários:

  1. Obrigado aos que se dispuseram a ler meu relato. Infelizmente, QUASE NADA melhorou desde aqueles dias, ao contrário, o cerco se fecha cada vez mais, ao nosso redor.

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  2. Em 2020, época de pandemia acho que piorou.

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