O texto a
seguir foi publicado originalmente na comunidade da PMRN. Sabe quando você está
com vontade de desabafar e vai descarregando tudo no teclado? Pois bem, esse
foi um desses momentos de inspiração.
O
responsável por essas linhas é ex-policial militar do Rio Grande do Norte (oito
anos na Gloriosa) e atualmente trabalha na polícia civil como escrivão. Assim,
ninguém pode dizer que ele não conhece o serviço policial e muito menos duvidar
de seu relato (por mais escabrosa que a história seja). Confira.
Este ano completa um total de cinco anos que as
tropas brasileiras estão no Haiti, cumprindo uma missão que DEVERIA ser
cumprida AQUI.
Durante meus dias na gloriosa, atendi muitas
ocorrências nas quais o personagem central era um veterano do Haiti. Geralmente
eram garotos entre 20 e 22 anos, mal saídos dos cueiros, mas já com a carreira
destroçada e a vida comprometida. Todos apresentavam elevado grau de
adrenalina, esquizofrenia, além de um exagerado senso de auto-defesa. Quando
passava um fusca “véi”, peidando, os garotos se jogavam no chão e saíam no
rastejo, procurando abrigo. Por diversas vezes tivemos que conduzi-los ao HGUN,
para internação.
Tudo isso são ecos da guerra, de uma escala
exagerada, que força os limites do ser humano e do profissional ao extremo,
deixando a qualidade do serviço à beira do caos. O soldado JOHN RAMBO, famoso
personagem do cinema encarnado por SYLVESTER STALLONE, é o maior exemplo,
embora fictício, da fadiga de combate à qual os médicos deram um nome bastante
alusivo: A SÍNDROME DO RAMBO.
A síndrome do rambo consiste num acúmulo de
estresse além do limite suportável pelo profissional da área de segurança,
incluindo-se aí as forças armadas. Os sintomas são justamente esses que os
ex-combatentes do Haiti demonstraram ao voltar de lá. Quase todos apresentam
sérios problemas psicológicos e alguns evoluíram o seu quadro de uma forma tão
fora de controle que passaram a ser atendidos pela psiquiatria e não mais pela
psicologia.
Conversando com alguns deles, depois de mais
calmos, ouvi relatos horríveis sobre o dia-a-dia entre o MEDO DE TER QUE MATAR
e a CERTEZA DA MORTE, nas favelas haitianas.
Segundo eles, os corpos das pessoas mortas nos
combates ficam expostos por semanas a fio, sem que ninguém os recolhessem, pois
justamente as pessoas que tentam dar cabo do trabalho funesto são os alvos
preferidos dos franco-atiradores, além de enfermeiros e paramédicos.
Um deles me falou que demorou mais de três meses
para se acostumar em casa, sem o colete e o capacete.
Às vezes vejo um deles, que mora no Pitimbu, assumindo
posição defensiva, atrás do muro de sua casa, como se estivesse em seu BUNKER
ou sua trincheira, sempre que um carro se aproxima. Depois que o carro passa,
ele direciona sua atenção em direção ao alto de uma duna próxima, como se nela
houvesse alguém à espreita, pronto para atacá-lo. O triste nessa história, é
que isso não é um caso isolado. E não acontece apenas nas forças armadas.
Submetidos a uma escala desumana e cruel, os
policiais brasileiros, em especial os policiais militares estão desenvolvendo
quadros patológicos iguais aos apresentados pelos veteranos de guerra. E o que
é pior: o cidadão comum das grandes cidades também sofre do mesmo mal.
No Haiti, segundo um deles relatou, a escala era
descontrolada, no início seguia o padrão 24 x 72h, o que garantia o repouso
físico e mental. Com o agravamento da situação, para poder conter a escalada da
violência no país, a força brasileira, à qual coube o papel de POLÍCIA local
teve de utilizar um remédio pior do que a doença: a famigerada redução da
escala de trabalho, passando a ser de 24 x 48h!
Apenas alguns dias depois de implantada, os frutos
negativos começaram a aparecer: combatentes cansados, desanimados,
desestimulados, com o moral baixo, começaram a surgir em todas as unidades
estacionadas no Haiti. Muitos começaram a adoecer e não conseguiam se recuperar
plenamente, pois a escala não permitia, afinal, aquilo é uma guerra!
Segundo um SGT que conheci no aeroporto, outro dia,
depois de um tempo praticamente não havia mais escalas: a tropa era enviada ao
campo através do velho sistema de sortidas (sorties), missões que só tinham
hora inicial, e como hora final, apenas a incerteza. De acordo com os relatos
do graduado, após cinco sortidas bem sucedidas os militares participantes eram
agraciados com alguns dias de repouso, quase sempre interrompidos por fogo
inimigo, de surpresa, ou então em missões urgentes de substituição.
O objetivo do presente texto é o de alertar aos
profissionais de segurança pública quanto à nocividade de escalas de trabalho inadequadas.
A SÍNDROME DO RAMBO está presente em nossos quartéis, em nossas delegacias, em
nossos presídios, em nossos institutos médicos legais, em nossos corpos de
bombeiros.
Esta semana visitei minha velha 2ª CIA/9º BPM de
guerra.
Fiquei muito triste ao saber de um episódio
envolvendo um dos melhores motoristas de lá, um caso notório da síndrome do
rambo.
O dito soldado, ao assumir o serviço, foi informado
de que teria de trabalhar num viatura composta de apenas dois policiais. Como
todos sabem que tal medida não é adequada ao serviço, por oferecer grande risco
aos policiais, o soldado questionou o tenente de sua CIA, e, segundo o que me
contaram, o oficial praticamente OBRIGOU o praça a assumir o serviço, da forma
como havia sido determinado pelo comando do batalhão.
Reza a má nova que o soldado entrou em crise
nervosa e sacou sua pistola, deflagrou alguns tiros para o alto e apontou a
mesma para o tenente, tendo este que agir em defesa própria e de seus
comandados presentes na ocasião. Após dominado, o soldado foi encaminhado ao
serviço de assistência psicológica do CENTRO CLÍNICO, e está afastado de
qualquer tipo de serviço, por enquanto.
Então, aos que exercem cargos administrativos, se
lhes for dado o poder de decisão sobre as escalas de serviço, fica o meu pedido
em nome de todos os colegas:
Pensem naqueles que são responsáveis pela
tranquilidade de seu sono, e ofertem aos mesmos a oportunidade de poderem
cochilar um pouco, sem ter de acordar a cada quarto de hora, tendo por canção
de ninar a voz do radio-operador chamando o prefixo de sua equipe.
Pensem nisso. Por tabela, a sociedade agradece.
Melhor do que deixar o RAMBO voltar pra casa, é fazer com que ele não precise
sair de lá.
Por: FLÁVIO HENRIQUE
Obrigado aos que se dispuseram a ler meu relato. Infelizmente, QUASE NADA melhorou desde aqueles dias, ao contrário, o cerco se fecha cada vez mais, ao nosso redor.
ResponderExcluirEm 2020, época de pandemia acho que piorou.
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